terça-feira, 16 de novembro de 2021

"O sol está raso com a cumeada dos montes, adivinha-se o mar do outro lado. A estrada desce em curvas, duas colinas parecem estrangulá-la lá em baixo, mas é ilusão dos olhos e da distância. Em frente, a meia encosta, há uma casa grande, de arquitectura simples, tem um ar de abandono, antigo, apesar de haver sinais de cultivo nos campos que a rodeiam. Parte da casa está já na sombra, a luz vai-se amortecendo, parece o mundo todo que se afunda em desmaio e solidão. Joaquim Sassa parou o carro. Todos saíram. O silêncio ouve-se, vibra como um eco final, talvez não seja mais que o bater distante das ondas nos penhascos, é sempre a melhor explicação, até dentro dos búzios a lembrança interminável das vagas ressoa, porém não é este o caso, aqui o que se ouve é o silêncio, ninguém deveria morrer antes de conhecê-lo, o silêncio, ouviste-o, podes ir, já sabes como é."


A Jangada de Pedra, José Saramago



Um amigo que, infelizmente, já não está entre nós – como é comum dizer-se dos que morreram – defendia, meio a brincar, meio a sério, que a Península Ibérica deveria ser um único país, com capital em Lisboa. Era de Múrcia e adorava o mar. Ríamos muito, e a brincar discutíamos quanto à escolha da língua: ele achava que, nesse país que sonhava, devia falar-se castelhano, e, claro, eu achava que o que devia era falar-se português. 

Lembro-me dele várias vezes. Lembrei-o hoje a propósito da comemoração do aniversário de José Saramago, talvez porque a magnífica metáfora do seu livro A Jangada de Pedra tenha servido, muitas vezes, de pano de fundo para o ensaio teórico desse país imaginado. Não necessariamente espanhol, não necessariamente português, cómico muitas vezes, trágico quase sempre.


Um abraço, onde quer que estejas.