"Tenho sobre Coppola um direito proprietário. Vi os filmes
todos, mais de uma vez. E considero sem apelo que apenas três génios
transcenderam a cansada designação de sétima arte. Charles Chaplin, Orson
Welles e Francis Ford Coppola. O direito proprietário deriva do facto de ter
uma vez tomado uma decisão crucial da minha vida à saída de “Drácula”. Estava
em Times Square, numa daquelas grandes salas americanas cheias de néons, com
ecrãs gigantes, numa altura em que na Europa ainda não havia ecrãs gigantes.
“Drácula”, um filme mal-amado numa fase em que Coppola
era crucificado, e estava mais ou menos arruinado para variar, é uma obra-prima
mal compreendida. Uma herança do Romantismo numa época realista e naturalista
que desdenha esse passado e recusa o artifício e o sobrenatural. A realidade
não chega para explicar o mundo. O filme tem uma das grandes interpretações de
Gary Oldman, por vezes considerado o maior ator vivo. O problema quando se
escreve sobre Coppola é o de destruir o valor dos adjetivos hiperbólicos e cair
na redundância do elogio. O homem é maior do que a vida.
Nessa noite em Times Square, tive uma terminal discussão
sobre “Drácula”. Eu a favor, o outro contra. Os argumentos alinhavam-se do lado
contrário. Barroco, excessivo, gratuito, uma ópera mal conduzida por um
encenador que destruía a história e o mito de Bram Stoker, reduzindo o vampiro
a uma personagem grotescamente vulnerável. Separámo-nos, em mortal
incompatibilidade. Prossegui na minha admiração por Coppola. Há pouco tempo fui
rever “One From the Heart”, saí da sala a esvoaçar.
“Megalopolis”. Coppola passou anos a dedicar-se à
hotelaria e aos vinhedos de Napa Valley para, aos 85 anos, realizar o sonho do
filme. E financiá-lo. Orson Welles, no fim da vida, fazia anúncios para ganhar
dinheiro para “The Other Side of the Wind”, megalomania inacabada. Welles
morreu meio de desgosto, como me contou Barbara Leaming, a biógrafa que mais
próxima esteve dele no fim. Quando ia a Nova Iorque, jantava com ela e o
marido, um professor de literatura russa na universidade, amigo de Joseph Brodsky
e dos exilados russos que por esse tempo assombravam a baixa de Manhattan,
antes da gentrificação, da chegada dos construtores. Da destruição da boémia
artística da Village. Os biografados de Leaming são, além de Welles, John F.
Kennedy, Winston Churchill, Jacqueline Kennedy Onassis, Marilyn Monroe, Rita
Hayworth e Roman Polanski. Podemos dizer que a minha amiga se dedicou à
grandeza. Falta neste cartel Francis Ford Coppola. Mundo mega mais do que meta.
“Megalopolis”. As imagens são poderosas, certos planos
são o máximo expoente da alucinação, mas o fio narrativo não só é inconsistente
como a fragmentação discursiva pode resvalar no lugar-comum. Coisa que o velho
Coppola nunca fez. Os monólogos de Shakespeare e os intermezzos romanos
e gregos, que descendem da cultura clássica e europeia deste cineasta
americano, são uma bengala que sustenta uma ausência de argumento. Ou, diria o
pós-modernismo, uma ausência de metanarrativa. Perigo da queda no vazio das palavras,
amparada pela literatura.
A implausibilidade não é o problema principal. A
implausibilidade nunca foi um problema, embora seja confortável para o
espectador. O problema é que a ambição de Coppola é servida pela idade
avançada. Os 85 anos são os 85 anos. Sozinho e solitário, Coppola não pediu
ajuda para realizar o sonho. Uns anos antes, certas falências narrativas não
seriam postas em cena. O que faz ali Hitler?
Além da idade, Coppola esteve muito tempo sem filmar, o
que significa que fez o que se faz à saída do túnel da privação, enfiou tudo
dentro do filme. Pode resultar num conjunto de vinhetas. O tema é vasto,
monstruoso, a decadência do império americano. O filme é uma soma de pedaços
desconjuntados, um Frankenstein a vaguear por entre as ruínas do capitalismo
triunfal.
“Megalopolis” tem um lado salvífico, o olho da câmara.
Que aguenta a narrativa sem narrativa. Antes de atirarem pedras a Coppola, os
críticos alimentados a Marvel deveriam pensar como é que os fragmentos deste
discurso visual podem aplicar-se ao mundo americano. Um sonho, uma visão, uma
utopia que caiu no poço da vulgaridade e da malignidade distópicas. Um império
a desmoronar-se, socorrendo-se do orgulho militarista, como escreveu Gore
Vidal. Nova Roma servida pelo dinheiro e a idolatria do dinheiro, com visionários
que propiciam a corrupção das almas e dos princípios. Que distorcem a realidade
até a tornarem um teatro de acusações e traições. E que persistem em salvar-nos
do mal, como deuses imperfeitos e sinceros.
Cheguei a casa vinda do cinema, rememorando as imagens, e
encontrei Donald Trump junto das batatas fritas. Num qualquer McDonald’s
algures nesse território desconjuntado chamado América. Trump, o aprendiz de
feiticeiro, o construtor da nova Manhattan, o utilizador do mayor corrupto
chamado Giuliani, estava na CNN. Envolvido pelos vapores da máquina fritadeira,
de avental, sacudindo o cabelo alaranjado. O aprendiz aprendia a fritar batatas
na máquina. Uma vinheta a não perder. Talvez Coppola tenha razão. Talvez a
América, como “Megalopolis”, já não faça sentido.
A outra vinheta é a de um Elon Musk despenteado, aos
pulos, na descoberta da emoção política e do amor da plebe, oferecendo um
cheque de um milhão de dólares a qualquer grupo de gente na Pensilvânia que
convencesse outro grupo de gente a votar em Trump. Sendo a Pensilvânia um dos
estados da chamada indecisão, Musk faz o que sabe fazer além da engenharia do
futuro. Atirar dinheiro para cima do problema. Musk é um Coriolano, e se assim
continuar transformar-se-á num protofascista, o ponto em que passará a odiar a
plebe depois de a amar.
Estas duas vinhetas reabilitam Coppola, ou a visão
deformada de Coppola. “Trump manages fry station”, a linguagem no original, em
rodapé, não será mais implausível e irreal do que os diálogos de “Megalopolis”?
Trump insultando Harris e chamando-lhe shit president não será apenas
uma extensão da hiper-realidade da Nova Roma em Nova Iorque? Coppola percebeu a
falácia imperial. A intuição está absolutamente certa. A linguagem atual dos
protagonistas é menos distinta do que a do filme.
O anacronismo da idade leva o génio a apoderar-se de dois
símbolos do bezerro de oiro que deixaram de o ser. Não são os banqueiros nem os
construtores que rasgam o tecido do império. São personagens como Musk, os
plutocratas da tecnologia, são os visionários de mágicas colonizações do tempo
pelos homens-máquinas que eles inventam, oferecendo à plebe o vício da
gratificação imediata. Os plutocratas da inteligência artificial estão a
ressuscitar as centrais nucleares desativadas para alimentarem a fome de energia
e ninguém diz uma palavra. A plebe anestesiada não resiste nem pensa, consome,
admira, elege.
Isto, Coppola, que é do século XX, não podia transferir
para o cinema. É demasiado tarde. Não teve tempo de estudar o admirável mundo
novo, a opacidade, o segredo, a complexidade algorítmica, e recorreu aos
banqueiros e construtores como arquitetos da impiedade. São categorias
obsoletas. O algoritmo é mais opressivo do que o megalon.
A visão está certa. “Megalopolis”, na formidável
desconjunção, acerta no diagnóstico. O vilão, personagem central do drama
humano, continua igual através dos séculos. Na tragédia de Shakespeare
ostentava uma grandeza que o vilão do século XXI, atolado na lama da corrupção,
não pode ostentar. Trump ou Musk nunca serão Macbeth.
A proximidade da morte levou Francis Ford Coppola a
trocar o final trágico desta ópera por um final feliz, ou quase feliz. Pelo
menos, otimista. Um futuro radioso para a espécie destruidora de mundos. Um
futuro altamente improvável. César e Catilina, duas referências históricas não
complementares, vivem em Adam Driver sem contradição. Os atores apreciam a
grandeza. César foi César, Catilina foi um conspirador que viveu da violência e
que pela violência foi aniquilado. César foi o construtor do império sobre as
ruínas da república romana e foi assassinado nos Idos de Março. Cícero, na Roma
Antiga, suprimiu a conspiração de Catilina executando conspiradores sem
julgamento para salvar a república. Públio Clódio Pulcro foi o tribuno da
plebe, um dos inimigos de Cícero. As mulheres de “Megalopolis” são um veículo
passivo das paixões dominantes. E aparece uma espécie de Taylor Swift, a
vestal. É genial, fica dito.
Em “Megalopolis”, Coppola não cuida da veracidade
histórica, distribui os nomes, cria as próprias referências retiradas de uma
cultura literária e histórica enciclopédicas. Uma cultura que deixou de
existir, como prova a cegueira dos críticos que deixaram escapar múltiplas
referências. A ignorância gera a incompreensão.
O mundo em que vivemos não é o de Francis Ford Coppola, é
pior. É
real."
Clara Ferreira Alves, EXPRESSO