sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Há momentos em que a adoro.

 

"Tenho sobre Coppola um direito proprietário. Vi os filmes todos, mais de uma vez. E considero sem apelo que apenas três génios transcenderam a cansada designação de sétima arte. Charles Chaplin, Orson Welles e Francis Ford Coppola. O direito proprietário deriva do facto de ter uma vez tomado uma decisão crucial da minha vida à saída de “Drácula”. Estava em Times Square, numa daquelas grandes salas americanas cheias de néons, com ecrãs gigantes, numa altura em que na Europa ainda não havia ecrãs gigantes.

“Drácula”, um filme mal-amado numa fase em que Coppola era crucificado, e estava mais ou menos arruinado para variar, é uma obra-prima mal compreendida. Uma herança do Romantismo numa época realista e naturalista que desdenha esse passado e recusa o artifício e o sobrenatural. A realidade não chega para explicar o mundo. O filme tem uma das grandes interpretações de Gary Oldman, por vezes considerado o maior ator vivo. O problema quando se escreve sobre Coppola é o de destruir o valor dos adjetivos hiperbólicos e cair na redundância do elogio. O homem é maior do que a vida.

Nessa noite em Times Square, tive uma terminal discussão sobre “Drácula”. Eu a favor, o outro contra. Os argumentos alinhavam-se do lado contrário. Barroco, excessivo, gratuito, uma ópera mal conduzida por um encenador que destruía a história e o mito de Bram Stoker, reduzindo o vampiro a uma personagem grotescamente vulnerável. Separámo-nos, em mortal incompatibilidade. Prossegui na minha admiração por Coppola. Há pouco tempo fui rever “One From the Heart”, saí da sala a esvoaçar.

“Megalopolis”. Coppola passou anos a dedicar-se à hotelaria e aos vinhedos de Napa Valley para, aos 85 anos, realizar o sonho do filme. E financiá-lo. Orson Welles, no fim da vida, fazia anúncios para ganhar dinheiro para “The Other Side of the Wind”, megalomania inacabada. Welles morreu meio de desgosto, como me contou Barbara Leaming, a biógrafa que mais próxima esteve dele no fim. Quando ia a Nova Iorque, jantava com ela e o marido, um professor de literatura russa na universidade, amigo de Joseph Brodsky e dos exilados russos que por esse tempo assombravam a baixa de Manhattan, antes da gentrificação, da chegada dos construtores. Da destruição da boémia artística da Village. Os biografados de Leaming são, além de Welles, John F. Kennedy, Winston Churchill, Jacqueline Kennedy Onassis, Marilyn Monroe, Rita Hayworth e Roman Polanski. Podemos dizer que a minha amiga se dedicou à grandeza. Falta neste cartel Francis Ford Coppola. Mundo mega mais do que meta.

“Megalopolis”. As imagens são poderosas, certos planos são o máximo expoente da alucinação, mas o fio narrativo não só é inconsistente como a fragmentação discursiva pode resvalar no lugar-comum. Coisa que o velho Coppola nunca fez. Os monólogos de Shakespeare e os intermezzos romanos e gregos, que descendem da cultura clássica e europeia deste cineasta americano, são uma bengala que sustenta uma ausência de argumento. Ou, diria o pós-modernismo, uma ausência de metanarrativa. Perigo da queda no vazio das palavras, amparada pela literatura.

A implausibilidade não é o problema principal. A implausibilidade nunca foi um problema, embora seja confortável para o espectador. O problema é que a ambição de Coppola é servida pela idade avançada. Os 85 anos são os 85 anos. Sozinho e solitário, Coppola não pediu ajuda para realizar o sonho. Uns anos antes, certas falências narrativas não seriam postas em cena. O que faz ali Hitler?

Além da idade, Coppola esteve muito tempo sem filmar, o que significa que fez o que se faz à saída do túnel da privação, enfiou tudo dentro do filme. Pode resultar num conjunto de vinhetas. O tema é vasto, monstruoso, a decadência do império americano. O filme é uma soma de pedaços desconjuntados, um Frankenstein a vaguear por entre as ruínas do capitalismo triunfal.

“Megalopolis” tem um lado salvífico, o olho da câmara. Que aguenta a narrativa sem narrativa. Antes de atirarem pedras a Coppola, os críticos alimentados a Marvel deveriam pensar como é que os fragmentos deste discurso visual podem aplicar-se ao mundo americano. Um sonho, uma visão, uma utopia que caiu no poço da vulgaridade e da malignidade distópicas. Um império a desmoronar-se, socorrendo-se do orgulho militarista, como escreveu Gore Vidal. Nova Roma servida pelo dinheiro e a idolatria do dinheiro, com visionários que propiciam a corrupção das almas e dos princípios. Que distorcem a realidade até a tornarem um teatro de acusações e traições. E que persistem em salvar-nos do mal, como deuses imperfeitos e sinceros.

Cheguei a casa vinda do cinema, rememorando as imagens, e encontrei Donald Trump junto das batatas fritas. Num qualquer McDonald’s algures nesse território desconjuntado chamado América. Trump, o aprendiz de feiticeiro, o construtor da nova Manhattan, o utilizador do mayor corrupto chamado Giuliani, estava na CNN. Envolvido pelos vapores da máquina fritadeira, de avental, sacudindo o cabelo alaranjado. O aprendiz aprendia a fritar batatas na máquina. Uma vinheta a não perder. Talvez Coppola tenha razão. Talvez a América, como “Megalopolis”, já não faça sentido.

A outra vinheta é a de um Elon Musk despenteado, aos pulos, na descoberta da emoção política e do amor da plebe, oferecendo um cheque de um milhão de dólares a qualquer grupo de gente na Pensilvânia que convencesse outro grupo de gente a votar em Trump. Sendo a Pensilvânia um dos estados da chamada indecisão, Musk faz o que sabe fazer além da engenharia do futuro. Atirar dinheiro para cima do problema. Musk é um Coriolano, e se assim continuar transformar-se-á num protofascista, o ponto em que passará a odiar a plebe depois de a amar.

Estas duas vinhetas reabilitam Coppola, ou a visão deformada de Coppola. “Trump manages fry station”, a linguagem no original, em rodapé, não será mais implausível e irreal do que os diálogos de “Megalopolis”? Trump insultando Harris e chamando-lhe shit president não será apenas uma extensão da hiper-realidade da Nova Roma em Nova Iorque? Coppola percebeu a falácia imperial. A intuição está absolutamente certa. A linguagem atual dos protagonistas é menos distinta do que a do filme.

O anacronismo da idade leva o génio a apoderar-se de dois símbolos do bezerro de oiro que deixaram de o ser. Não são os banqueiros nem os construtores que rasgam o tecido do império. São personagens como Musk, os plutocratas da tecnologia, são os visionários de mágicas colonizações do tempo pelos homens-máquinas que eles inventam, oferecendo à plebe o vício da gratificação imediata. Os plutocratas da inteligência artificial estão a ressuscitar as centrais nucleares desativadas para alimentarem a fome de energia e ninguém diz uma palavra. A plebe anestesiada não resiste nem pensa, consome, admira, elege.

Isto, Coppola, que é do século XX, não podia transferir para o cinema. É demasiado tarde. Não teve tempo de estudar o admirável mundo novo, a opacidade, o segredo, a complexidade algorítmica, e recorreu aos banqueiros e construtores como arquitetos da impiedade. São categorias obsoletas. O algoritmo é mais opressivo do que o megalon.

A visão está certa. “Megalopolis”, na formidável desconjunção, acerta no diagnóstico. O vilão, personagem central do drama humano, continua igual através dos séculos. Na tragédia de Shakespeare ostentava uma grandeza que o vilão do século XXI, atolado na lama da corrupção, não pode ostentar. Trump ou Musk nunca serão Macbeth.

A proximidade da morte levou Francis Ford Coppola a trocar o final trágico desta ópera por um final feliz, ou quase feliz. Pelo menos, otimista. Um futuro radioso para a espécie destruidora de mundos. Um futuro altamente improvável. César e Catilina, duas referências históricas não complementares, vivem em Adam Driver sem contradição. Os atores apreciam a grandeza. César foi César, Catilina foi um conspirador que viveu da violência e que pela violência foi aniquilado. César foi o construtor do império sobre as ruínas da república romana e foi assassinado nos Idos de Março. Cícero, na Roma Antiga, suprimiu a conspiração de Catilina executando conspiradores sem julgamento para salvar a república. Públio Clódio Pulcro foi o tribuno da plebe, um dos inimigos de Cícero. As mulheres de “Megalopolis” são um veículo passivo das paixões dominantes. E aparece uma espécie de Taylor Swift, a vestal. É genial, fica dito.

Em “Megalopolis”, Coppola não cuida da veracidade histórica, distribui os nomes, cria as próprias referências retiradas de uma cultura literária e histórica enciclopédicas. Uma cultura que deixou de existir, como prova a cegueira dos críticos que deixaram escapar múltiplas referências. A ignorância gera a incompreensão.

O mundo em que vivemos não é o de Francis Ford Coppola, é pior. É real."

Clara Ferreira Alves, EXPRESSO