quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 

Olharmo-nos nos olhos sem desculpa. Para o bem e para o mal. Deve ser a única coisa boa que resulta de usar máscara grande parte dos nossos novos dias.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Entre Livros e Estórias

Nunca vivi longe do mar. Não sei se seria capaz de viver longe do mar. É uma intransigência (não é bem) um pouco desentoada, porque o uso apenas como abrigo e repouso. Para o ver e o ouvir nas histórias que conta. Como a daquele casal (do que parece ter-se convencionado chamar “de idade”) sentado em frente àquela imensidão de azul, cada um na sua cadeira portátil, de azul petróleo, a dela, de riscas coloridas como um arco-íris, a dele, colocadas lado a lado entre as pedras das arribas que o Sol inunda generosamente antes da hora do recolher. Conversam serenamente, com o mar como uma tela de fundo, os dois de jeans e pulôver de malha, encostados à altura do ombro, sem pressa, perdidos em si mesmos e, imagino, no balanço das ondas que o mar agita, também num compasso próprio e alheio a angústias. Não sei se já o faziam antes desta peste. A conversa íntima, de frente para o mar, entre as pedras e as ervas rasteiras, no conforto das cadeiras trazidas de casa. Nunca os vi antes, e passo naquela estrada tantas vezes que já lhes perdi a conta. Passo, fico, pasmo e, por vezes, também converso. Talvez o faça mais agora, sim. Talvez o façam eles mais agora, também.

Entre os que passeiam ao longo da linha de mar, não há ninguém de rosto enfiado no écran do telemóvel. Bem sei que, normalmente, quem procura encontrar-se com o mundo real – eventualmente, procurando refúgio em passeios ao ar livre, enchendo de vida a vida que se agarra com desejo – é menos tentado por distracções daquele género. Mas, ainda assim, creio que sempre vi algum prevaricador fortuito. Não é, agora, o caso. Há uma comunhão de vontades, um quadro perfeito, que dispensa devaneios estéreis.

 

Na tranquilidade aparente do tempo, aproveito para ajustar a leitura. Não costumo deixar um livro antes de o terminar. Mesmo quando me desiludo às primeiras páginas, o que nem era o caso daquele que tinha em mãos. Mas, estava desatenta e, a propósito de listas de livros que revisito e actualizo com regularidade, (re)apareceu-me o Cosmos de Carl Sagan. Já não sei bem quando o li pela primeira vez. Sei que foi há muitos anos e, apesar de o considerar um dos mais belos livros que já li – de Ciência, mas não só – apercebi-me de que nunca tinha lá voltado. Para ler outra vez, de uma ponta à outra, sem batota, como se fosse a primeira vez. Na verdade, não é difícil. Não é nada difícil. E sorrio sempre quando recordo a curiosidade teimosa de Eratóstenes. Aquela curiosidade astuta, de desconfiança sadia, não a dúvida torpe dos livres pantomineiros, enlameados no embuste novo-chique do finjo que penso, logo, se assim não penso, nada disso existe.


“Um livro é feito a partir de uma árvore. É um conjunto de partes planas e flexíveis (ainda chamadas “folhas”) impressas de rabiscos tingidos a negro. Um olhar rápido e ouvimos a voz de outra pessoa – talvez de alguém morto há milhares de anos. Através dos milénios, o autor fala, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas, cidadãos de distantes épocas, que nunca se conheceram. Os livros rompem as amarras do tempo, provam que o Homem é capaz de realizar magia.”

Carl Sagan


Depois, há a ameaça de segredos revelados nas palavras que escrevemos. Que partes de nós entregámos? Quantas te bastam? Quantas me perdem?

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Admirável Mundo Novo

Plagiei o título (mais ou menos). Não sei se se pode. E nunca li o livro (mais exactamente, “ainda não"), o que é, além de uma vergonha, um risco, porque, nas próximas linhas, posso vir a plagiar mais qualquer coisa, desta vez de forma não intencional e com menos competência ainda.

Adiante.

Dizem-me que o Miguel Sousa Tavares fez uma não-entrevista ao André Ventura, mas não tive paciência para ver. Há muito tempo que gosto mais de o ler do que de o ouvir. Ao primeiro. O segundo é um charlatão vaidoso e oportunista, defensor do direito de dizer uma coisa e o seu contrário sempre que isso sirva os seus intentos (pois, se calhar, não é modelo único) e que só ainda não atingiu o estatuto de estrela do semi-homólogo americano porque ninguém leva muito a sério um durão (assim mesmo, em modo de adjectivo, nada de confusões) que tem como animal de companhia uma coelhinha chamada Acácia, ou lá o é. Mas Portugal é um prodígio para lá dos fenómenos do Entroncamento e dos entendimentos nos Açores e, como tal, André Ventura vai ganhando palco. Um imenso palco. Ansiávamos pelo nosso “fascista” popularucho com a mesma avidez com que esperámos pelo nosso primeiro caso de Covid-19. Aí o temos, cheio de “eu faço”, a não ser que não faça, “eu aconteço”, a não ser que não aconteça, eu ameaço e nem preciso de esbracejar demasiado porque a desorientação que se instalou (“tem algum amigo preto”; a sério?!), da comunicação social à classe política, aquém e além mar, serve todos os propósitos destes santos de pau oco que a Democracia também alimenta, porque a Liberdade é a bela e é o monstro do nosso descontentamento.  Não sei há quantos dias anda o André Ventura nas bocas do nosso mundo, mas, ultimamente, a cada vez que o vejo – de relance, numa ameaça de flash noticioso –, parece-me mais jovial, mais solto, mais de bem com a vida, e percebe-se porquê. Percebe-se que ainda não se percebe bem qual a melhor maneira de lidar com aquilo, como não se percebeu  ainda qual a melhor maneira de lidar com ex-actual-ou-actual-ex-presidente dos EUA, que continua na sua senda negacionista, mimada e birrenta, com o mundo suspenso dos seus humores e das suas partidas de golfe: que outro regime político seria capaz de parir tamanho espectáculo? Há as ditaduras, sim, mas começam a ser bastante aborrecidas. Nada como deixar o povo escolher. Desde que sejamos nós a escolher o povo que deve poder escolher. Sem qualquer confusão, portanto.

 

Entre outras venturas e desventuras, há boas (aparentemente) notícias sobre os avanços relativamente à milagrosa vacina que vai tornar o nosso mundo normal outra vez, seja lá o que isso for. Veremos se este normal que não se pode dizer novo dará lugar a uma realidade que, em não podendo vir a chamar-se de velha, se aproxime, pelo menos, de algo suportável. Também ouvi qualquer coisa sobre a necessidade de renovar o estado de emergência, sucessivamente, tantas vezes quantas as que forem necessárias, até “esmagar” a danada da curva que teima em desafiar a nossa capacidade de resistência. Menos mal que aguentamos, não é?, como já nos garantiram em ocasião anterior. Entretanto, quer-se impedir que profissionais de saúde abandonem o SNS rumo aos hospitais privados, que o tempo é de pandemia e de colapso iminente dos serviços, enquanto os colégios privados perdem professores para as escolas públicas, porque os professores a mais que Portugal tem há anos, afinal não chegam para garantir o anormal funcionamento das aulas em tempo de covid. E sei bem que tudo isto merece maior reflexão e cuidado, mas ando mesmo, mesmo com pouca paciência. Como toda a gente, provavelmente. Percebo, aliás, que não tenho sido sequer capaz de ler o livro que tenho em mãos. Vou virando páginas sem dar acordo do que se passa dentro, as letras como uns gatafunhos medonhos tingidos de um negro a que não acho graça. Falta-me a tranquilidade necessária para pôr ordem nas linhas, sorvê-las com o mesmo prazer com que tomo o café acabado de fazer, numa chávena de louça, amargo e forte, puro e intenso como algumas das melhores recordações. Suspendo-o, por isso. Ao livro, já que o mesmo não posso fazer aos dias, a estes dias, e aguardo que a tempestade esmoreça e se desfaça num vento inquieto capaz de mordiscar as folhas sem as rasgar e de apressar o mar sem o dilacerar. 

Também soube que a Hungria e a Polónia vetaram o Orçamento Comunitário e o Fundo de Recuperação, a "bazuca" com que a União Europeia pretende ajudar os Estados-membros a minimizar os efeitos devastadores da pandemia sobre a economia dos diferentes países. Victor Órban e Mateusz Morawiecki não querem ver o acesso aos fundos europeus condicionado a coisas miúdas, como o respeito pelas regras do Estado de direito. Não há-de ser grave. Não há regra que não tenha a sua excepção nem direito que não possa ser beliscado. Tudo vai acabar bem. Mas, enquanto não chegam melhores ventos, aproveito o sol de Outono, que prefiro ao de Verão (como prefiro o de Inverno) porque aquece sem estalar e deixa na pele uma carícia suave que me reconcilia com a obrigação de usar máscara, de dosear os afectos, de evitar abraços, de fingir que os dias se aguentam melhor se afogarmos a saudade numa manhã como a de hoje.

domingo, 15 de novembro de 2020

 

Entro aí sempre cheia de cautelas e saio sempre deixando-me pedaços. Há uma certa arrogância em pensar que podemos imaginar o tamanho da dor do outro; a dimensão do seu inferno. Na verdade, não sabemos nada. Excepto que há alturas em que o silêncio parece não chegar e, no entanto, as palavras parecem demasiado despidas. Quase ofensivas na sua simplicidade. Mas ainda acredito que há um tempo para sarar. Apesar da estridência obscena dos novos dias. 

domingo, 8 de novembro de 2020

Destes dias


Não conheço ninguém que viva num lar. Mesmo que seja possível, isso de viver num lar. Dizem que há lares que são mesmo Lares. Espero nunca vir a precisar, nem para mim própria, nem para os meus mais queridos. Até à presente data, os meus dois únicos familiares com necessidade de acompanhamento permanente numa determinada fase da sua vida tiveram a possibilidade, afortunada, de ficar em casa até ao fim da agonia. Na impossibilidade de afastar as doenças, terríveis as duas, o segundo privilégio foi a agonia não se ter prolongado por tempo demasiado indecente. Há um tempo minimamente decente para aguentar uma espécie de coisa que já não é vida. Para quem resiste e para quem assiste, impotente, mesmo que faça todo o possível para fazer muito mais. E quem passa pelo horror da experiência, passa por ela de forma diferente, pelo que não há muito mais a dizer. A não ser que não tenho medo de envelhecer. Creio que nem sequer tenho um medo estapafúrdio da morte. Tenho pena de deixar de viver, e tenho medo de deixar de viver muito antes da morte chegar. Comungo da ideia de que a morte não chega exactamente com o último sopro.

Entre os mais desprotegidos dos mais desprotegidos, continuam os mais velhos, os mais doentes e os mais pobres. Prepara-se outra etapa de combate à pandemia que, temo, ameaça tornar-se num outro remendo. Mas nada disto é fácil. Inevitavelmente, com o SNS à beira do colapso, o Governo decretou o recolhimento obrigatório em alguns dos concelhos com maior número de infectados. Parece que andamos a portar-nos muito mal. Talvez seja, não sei. Sei que andamos a usar as máscaras mal desde o início. Já não sei se isso chega para explicar tudo. Tenho tido – como todos – muita dificuldade em equilibrar o deve e o haver (se posso dizer assim) da nossa gestão desta pandemia que o final de ano não vai levar, afinal. Nossa, enquanto país, nossa, individualmente. Nesta fase, imagino, serão poucos os que ainda não conhecem alguém doente. No mínimo. Talvez sejam mais os que ainda não perderam ninguém para a doença. Para outras doenças, atiradas para um canto por esta. Cada um de nós terá tido a sua dose. Mais uma vez, pessoal e intransmissível. Acresce que também não vejo os meus pais há muito mais tempo do que queria – do que quereríamos e do que nos devemos – e debato-me entre a vontade de os abraçar e o medo de poder contaminá-los. Fala-se muito sobre a liberdade que os nossos pais e avós devem ter, impreterivelmente, de decidir se querem ou não abdicar dos seus afectos em favor de um imperativo maior que é viver sanitariamente o tempo que têm pela frente. Eu concordo com isso, mas só em parte. Ou melhor: não é tanto uma questão de concordar ou não concordar, é o que fazer com a culpa que fica depois, caso haja esse depois que ninguém deseja; que eu, pessoalmente, não quero sequer equacionar. Será egoísmo meu.

O celebrado milagre português – que, afinal, não foi bem – foi forjado sobre os ombros dos profissionais de saúde dedicados e com enorme espírito de sacrifício; parece-me bastante certo. Além, claro, da nossa vontade de ficar em casa; motivada pelo medo, sim. Maioritariamente, talvez. Do mesmo modo que, agora, por exemplo, muitas escolas se têm aguentado à custa da dedicação e espírito de sacrifício de professores e funcionários. Claro que não de todos, evidentemente, não há nenhuma classe profissional livre da sua nodoazinha de marca. Mas dos suficientes para o caos não ser maior ainda. Há funcionários a reduzir, por iniciativa própria, as suas pausas para almoço, para conseguirem (outro exemplo) limpar todas as salas entre horários de manhã e tarde, quando rodam as turmas. E professores a duplicar parte das tarefas, porque, aparentemente, em alguns concelhos toda a turma fica em casa quando há um ou mais alunos infectados e, noutros concelhos, só ficam em casa os alunos infectados: a restante turma continua com aulas presenciais e não há dois professores diferentes para o efeito. Entretanto, o Governo continua a falar nos computadores que chegam aos alunos mais carenciados, e há escolas aonde não chegaram, ainda, nem computadores nem professores. Evidentemente, um sistema de colocação de professores obsoleto e apodrecido pesa nas contas cada vez mais inconciliáveis.

E, sim, nos últimos dias andei obcecada com as eleições americanas. É-me indiferente (talvez "quase indiferente" seja mais honesto) o rumo da política na América, assunto sobre o qual percebo pouco mais que nada. Para mim, a questão não era essa. Há maldade e maldade, escuridão e escuridão, trevas para além das linhas que nos arrancam pedaços, ou da sombra negra das nuvens antes da tempestade perfeita. Donald Trump é maldade na sua forma nauseabunda. Ventura é um menino de fralda. É esse o grande legado de Trump. Não só por cá. Veremos por quanto tempo. Fico aliviada com a vitória de Biden (mesmo que Trump e a sua corja esperneiem e possam, ainda, ressuscitar), não porque Biden seja uma competentíssima promessa, mas porque tenho mais facilidade em explicá-lo a ele à criança que pus no mundo e que vou tantando educar. Não tem nada a ver com ser boazinha. Também já fui capaz de o ensinar a não bater em ninguém por sua iniciativa, aconselhando-o, contudo, a que se alguém lhe batesse primeiro, que pensasse duas vezes entre ir, ou vir, fazer queixinhas, ou defender-se também pela força física: da primeira vez, pode resultar bem em ambos os casos, mas é bem possível que apenas no segundo o problema se resolva logo de vez. Sou um mãe cheia de incongruências. Mas a vida sem os nossos demónios talvez também não seja bem vida.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Só porque alguém mo lembrou...

... e fui ouvir outra vez. Pronto, tirava de lá a Sarah Palin, se calhar.

Crónica de uma morte anunciada: a da Democracia Americana.

Pelo seu presidente in-chief, ainda. Ou in-shit, já não parece grande diferença. Trump é um homem miserável. Se ainda restasse alguma dúvida, bastava tê-lo ouvido (e visto) ontem. É inacreditável como ainda há, pelo menos, setenta milhões de eleitores americanos que o escolhem. Como ainda não existe, nesta altura, uma vitória clara, expressiva, do seu opositor.

O ainda presidente dos EUA jogou a penúltima cartada para se manter, histericamente, no poder. A última,  a mais desesperada, talvez venha a ser convocar, loud and clear, mais loud and clear ainda do que o stand back and stand by  atirado em directo, os seus rapazes e raparigas para um motim armado, que o segure na sua Sala Oval. A que sequestrou com a cumplicidade vergonhosa do partido republicano. E os elogios que tenho ouvido, por cá, às suas políticas enojam-me. Há uma diferença entre não alinhar no "politicamente correcto" nem em falsos moralismos - com que, muitas vezes, conocordo - e aquilo que Trump representa. O que se diria do homem se o homem fosse uma mulher.


Espero que Joe Biden ganhe estas eleições. Espero que as instituições americanas resistam, que haja um pingo de decência que, no limite há muito ultrapassado, haja alguém capaz de bater com a porta e dizer enough is enough e que a América vá a tempo de sarar. Eu, na minha arrogância enorme de achar que há uma linha que não poderia nunca ter sido cruzada.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

De manhã, ao acordar, há uma pequena fracção de segundo em que tudo parece vazio. Um estado de semi-inconsciência, muito ténue, fugaz, em que o mundo ainda não se abateu sobre mim e, por um minúsculo instante, não há mortos, nem números, nem distâncias, nem contágios ou contagens, nem ruína iminente. Nem saudade. Não há, sequer, o canto dos pássaros, nem os gritos esganiçados das gaivotas. Nem uma ameaça de sobressalto. Apenas um nada, imenso, de quietude, imediatamente antes do alarme.  

Despido o embuste, há um mundo em ebulição. Há uma linha de calendário, um ano miserável, sôfrego, calamitoso - espantoso, simultaneamente -, que não dá tréguas. Vivemos - nós, no presente - um momento histórico. Diz-se isso, muitas vezes: um momento histórico. Mas, este, é mesmo um tempo extraordinário. Gostaria de viver o suficiente para vir a poder olhá-lo com o distanciamento que merece. Para tentar entender o que, de momento, é absolutamente insano.