segunda-feira, 30 de novembro de 2020


"De tudo o que é escrito, amo apenas aquilo que alguém escreveu com o seu próprio sangue."

Friedrich Nietzsche


Dessas palavras que se escrevem a sangue, escolho cuidadosamente as que parecem falar-me ao ouvido; saber quem sou. Ouço-as uma e outra vez, sabendo bem que me deixo confundir. Se não fosse o ar frio da manhã, que aquieta, por momentos, o meu mundo, o próprio vento me traria pedaços das histórias que guardo em segredo.

domingo, 29 de novembro de 2020

Qualquer coisa sobre a (ir)racionalidade dos afectos

Há muito tempo (creio que desde que tenho consciência da minha finitude) que me decidi pela vontade de, quando morrer, ser cremada. A ideia do meu corpo desabitado fechado numa coisa a que se dá o nome de caixão, onde, depois, desceria às entranhas da terra, entre arremessos de flores, para aí apodrecer entre vermes, em repouso eterno, causa-me mais repulsa do que a certeza de que, um dia – lá longe, muito, muito longe, espero – a minha vida, como todas as outras vidas, chegará a seu termo. Como não acredito na reencarnação, não preciso de preservar nada mais para além da certeza de ter valido a pena. O tempo que por cá passar. Também não tenho nenhum desejo especial para o que sobrar de mim. Desde que não me lancem ao mar: prefiro continuar a admirá-lo de longe, se se der o caso não provado ainda de restar um leve vestígio de memória entre os átomos de que me faço.

Morrer anonimamente há-de ser uma bênção. Talvez mais do que viver anonimamente. Ouvir gente desconhecida falar dos nossos – mesmo que os nossos se tenham lançado por vontade própria nos braços mercenários do mundo, ou o mundo os tenha arrancado a ferros à mudez de uma existência livre de lendas em vida e em morte – é uma insolência. Mesmo quando esse falar se faz de admiração exaltada, incontida. Os tributos que se devem (devem?) aos que morrem publicamente, vertidos em elogios fúnebres que se multiplicam abruptamente em editoriais, artigos de opinião, entrevistas curtas, posts nas redes sociais e toda uma parafernália acrescida de revisitações das vidas que se apagam violentamente, deixam muitas vezes a impressão (injusta, talvez) de que só a morte é capaz de destapar as virtudes encobertas até aí. Há um certo pudor em falar mal dos mortos e talvez seja esse pudor a permitir o exagero da vénia.

Os últimos dias encheram-se de homenagens histéricas a Diego Maradona. Histéricas, não necessariamente no sentido detestável do termo (mas também). Eu – que não gosto especialmente do futebol jogado e abomino a veneração pornográfica que se oferece, quer ao espectáculo em si, quer aos seus protagonistas – posso perceber que haja quem lamente destemperadamente a morte de alguém que, pelo que me dizem, foi o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Mais do que um génio, um deus. E, quando se dedica algum tempo a admirar a Física em acção, na sua transmutação profana em golos e passes de bola arrancados às leis de Newton, é fácil deixarmo-nos enamorar pela magia dos equilíbrios escondidos nos misteriosos centros de gravidade. De que Maradona saberia muito pouco, aliás. Da parte teórica e aborrecida da coisa, entenda-se. É como a geometria por detrás de uma bela partida de bilhar, com a diferença de que ninguém enlouquece pelo melhor jogador disso do mundo. O futebol tem um lugar especial e cativo no delírio (anti-)desportivo colectivo, talvez por permitir que durante 90 minutos, pelo menos, os adeptos se portem com a indecência que o desporto tolera, com a complacência irresponsável de muitos. Para alimentar a ilusão – e o arrebatamento –, a arte não só não está ao alcance de todos, mesmo que se perceba muito da Ciência que comanda o jogo, como é (quase) possível acreditar que, por um breve momento, é a própria Ciência que se verga a esse génio endeusado. Que eu não honro, no que toca a "futebóis", não é ao que venho. Aflige-me sempre o culto de massas. Hiperbólico em quase tudo. A questão é outra. O Homem é bastante imperfeito (e aquele homem, em particular) e há umas imperfeições mais desculpáveis do que outras. Até onde pode chegar a admiração por alguém que, em algum momento da sua vida, ou numa vida inteira desses maus momentos, se portou como um imoral? Várias vozes se levantaram contra o exemplo de Maradona. Como assim, venerar um homem cheio de tantos pecados, mesmo que esse homem seja “el pibe de oro”, amado até pelo Papa Francisco (sendo que o Papa tem, pelo menos, a desculpa dos santos, que mandam amar o próximo como a si mesmo)? Um artigo publicado no The Guardian no passado dia 27 falava da facilidade com que se esqueceu a violência contra as mulheres, nas homenagens a Maradona. Como já antes se a havia esquecido, nos tributos a Sean Connery, que, ao contrário do génio da bola, admirei bastante em vida. Como continuar a ouvir as músicas de Michael Jackson depois de saber das denúncias dos abusos sobre crianças; depois de ver Leaving Neverland? Como ler Pablo Neruda, mesmo morto, depois de conhecido o relato, na primeira pessoa, da violação de uma mulher, no tempo da colónia britânica do Ceilão (e terá sido "apenas" essa)? Como é possível erguermos heróis sobre os escombros dos seus crimes?  Quantos anos precisam de passar para nos ser permitido perdoá-los? Pois, não sei bem. Não sei nada. Continuo a ler Neruda e a ouvir Michael Jackson, entre outros ultrajes; de que não constam, de facto, a devoção ao futebol, mas isso não me torna menos infame. Não há como branquear o lodo dos monstros que amamos e não partilho da tentativa de racionalização que alguns ensaiam sobre quem podemos ou não podemos homenagear, como se uma vítima fosse mais ou menos vítima de acordo com o estatuto do abusador. Nem acato bem a ideia de que o que é importante e é preciso é separar a magnificência da obra da miséria do autor: isso é só o que nos dizemos para nos redimirmos. Acho apenas que devemos aceitar a nossa parte da culpa. E que até os mais puros têm o seu lado bafiento, tenebroso. Mesmo quando nos querem convencer do contrário.


E desviei-me de quase tudo o que queria dizer quando comecei isto. Vinha principalmente falar de afectos, desses, capazes de nos desordenar a razão, se nos faltarem, e acabei na irracionalidade das paixões por que nos perdemos. Não é bem a mesma coisa. Tudo porque tropecei na notícia sobre o novo livro de António Damásio, enquanto procurava as minhas fotografias do belíssimo cemitério Mirogoj. Mais ou menos. Percebo que faço muito pouco sentido.





sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Fui apanhar uma corrente de ar.



Orçamento de(t)Estado

Diz-me como te orçamentas, dir-te-ei quanto duras.

De orçamento em orçamento até ao estertor (ou estupor) final.

Atrás de um queijo limiano virá quem da negociata do orçamento pior fará.


Podia continuar, mas acho que é mais ou menos isto. Entretanto, plagiei outro título, mas, desta vez, é meu, pelo que a culpa será menor. Espero.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Sobre coisas realmente abjectas

Segundo a organização internacional Save the Chlidren, nos últimos dez anos “a guerra matou ou mutilou 93 236 crianças”. Li esta notícia há dois dias, pelo que, hoje, muito provavelmente, aquele número já estará desactualizado. 

O sofrimento das crianças que (sobre)vivem em palcos de guerra – guerra mesmo guerra – é tão terrível, tão obsceno, que nunca seremos (nós, os ocidentais privilegiados; mesmo os “remediados”) capazes de imaginar o inferno que se vive nesses países. O esquecimento que dedicamos à miséria dessa gente desfeita pela acaso de ter nascido no lado errado do mundo deve ser uma forma de preservarmos a nossa sanidade mental. De outro modo, seríamos incapazes de levar uma vida normal, para lá do empecilho das máscaras e do abuso do Estado sobre o controlo da hora a que nos devemos recolher. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, mas, para uma insuportavelmente extensa parte da população mundial, essa igualdade e liberdade outorgada em declarações e decretos morre no próprio acto de nascer.

No mesmo dia e no mesmo jornal, li sobre as mais de 33 mil pessoas que fugiram para o Sudão em menos de três semanas: são etíopes que tentam, assim, escapar ao conflito que opõe o Governo de Abiy Ahmed à “Frente de Libertação do Povo Tigré”. O acordo de paz entre a Etiópia e a Eritreia provocou descontentamento entre rebeldes e, aparentemente, o adiamento das eleições legislativas e presidenciais motivado pela gestão da crise pandémica da covid-19 fez, ou desfez, tudo o resto. Podia ser só uma ironia.


E, por cá, o ano de 2020 já viu morrer 30 mulheres em contexto de violência doméstica. Até há uns dias, que o malfadado ano ainda não terminou. Embora, este ano, no que toca a este drama, não seja muito diferente de outros anos. 

Em alguns casos (invariavelmente, ano após ano), houve crianças a assistir aos crimes. Pergunto-me sempre – e, obviamente, não sou a única – por que motivo serão sempre as mulheres e as crianças as obrigadas a fugir e a viver escondidas dos seus agressores, quando deveriam ser estes a permanecer em casas, ou celas, de isolamento, privados da sua rotina de espancar porque sim, abusar porque o dia correu mal, matar porque tropeçaram noutra qualquer frustração que o mau génio alimenta. Há, no entanto, outro número assustador: o de jovens que acham "normal" a existência de violência no namoro. Controlar, proibir, enciumar-se, querer violentamente são, para muitos – ou, mais exactamente e desgraçadamente, para muitas – sinónimos de amar muito e amar bem. 


Ainda sobre a violência extrema sobre o outro – que, de tão banal e normal, deixou de chocar fora da orgia persecutória das redes sociais –, soube-se que a directora do SEF admitiu que Ihor Homenyuk foi torturado, evidentemente, mas achou por bem manter-se em silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto lhe foi possível e não considera demitir-se. 

Os contornos deste assassínio continuam a provocar-me náuseas. Pela morte e tortura de um homem, gratuitamente, às mãos de uns cobardes nojentos e por ser evidente que só se pode ser tão levianamente criminoso no exercício de um cargo de poder quando se goza de uma imensa sensação de impunidade dentro da instituição a que se pertence. Há tantas pontas soltas nesta história de horror, tanta indecência, que se tornaria insuportável num país que se quer civilizado. Mas, não parece ser o caso. 


E, não há muitos dias, a SIC Notícias exibia uma reportagem sobre suspeitas de negligência num lar ilegal na zona de Palmela. Negligência é um brutal eufemismo para o que ali se viu e ouviu. Não sei bem se a SIC deveria ter mostrado aquelas imagens ou não. Há sempre uma dúvida, quando a situação é tão grave que roça o absurdo. Às vezes desejo que exista isso a que alguns chamam Inferno. O bíblico. E que seja realmente eterno.

 

Olharmo-nos nos olhos sem desculpa. Para o bem e para o mal. Deve ser a única coisa boa que resulta de usar máscara grande parte dos nossos novos dias.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Entre Livros e Estórias

Nunca vivi longe do mar. Não sei se seria capaz de viver longe do mar. É uma intransigência (não é bem) um pouco desentoada, porque o uso apenas como abrigo e repouso. Para o ver e o ouvir nas histórias que conta. Como a daquele casal (do que parece ter-se convencionado chamar “de idade”) sentado em frente àquela imensidão de azul, cada um na sua cadeira portátil, de azul petróleo, a dela, de riscas coloridas como um arco-íris, a dele, colocadas lado a lado entre as pedras das arribas que o Sol inunda generosamente antes da hora do recolher. Conversam serenamente, com o mar como uma tela de fundo, os dois de jeans e pulôver de malha, encostados à altura do ombro, sem pressa, perdidos em si mesmos e, imagino, no balanço das ondas que o mar agita, também num compasso próprio e alheio a angústias. Não sei se já o faziam antes desta peste. A conversa íntima, de frente para o mar, entre as pedras e as ervas rasteiras, no conforto das cadeiras trazidas de casa. Nunca os vi antes, e passo naquela estrada tantas vezes que já lhes perdi a conta. Passo, fico, pasmo e, por vezes, também converso. Talvez o faça mais agora, sim. Talvez o façam eles mais agora, também.

Entre os que passeiam ao longo da linha de mar, não há ninguém de rosto enfiado no écran do telemóvel. Bem sei que, normalmente, quem procura encontrar-se com o mundo real – eventualmente, procurando refúgio em passeios ao ar livre, enchendo de vida a vida que se agarra com desejo – é menos tentado por distracções daquele género. Mas, ainda assim, creio que sempre vi algum prevaricador fortuito. Não é, agora, o caso. Há uma comunhão de vontades, um quadro perfeito, que dispensa devaneios estéreis.

 

Na tranquilidade aparente do tempo, aproveito para ajustar a leitura. Não costumo deixar um livro antes de o terminar. Mesmo quando me desiludo às primeiras páginas, o que nem era o caso daquele que tinha em mãos. Mas, estava desatenta e, a propósito de listas de livros que revisito e actualizo com regularidade, (re)apareceu-me o Cosmos de Carl Sagan. Já não sei bem quando o li pela primeira vez. Sei que foi há muitos anos e, apesar de o considerar um dos mais belos livros que já li – de Ciência, mas não só – apercebi-me de que nunca tinha lá voltado. Para ler outra vez, de uma ponta à outra, sem batota, como se fosse a primeira vez. Na verdade, não é difícil. Não é nada difícil. E sorrio sempre quando recordo a curiosidade teimosa de Eratóstenes. Aquela curiosidade astuta, de desconfiança sadia, não a dúvida torpe dos livres pantomineiros, enlameados no embuste novo-chique do finjo que penso, logo, se assim não penso, nada disso existe.


“Um livro é feito a partir de uma árvore. É um conjunto de partes planas e flexíveis (ainda chamadas “folhas”) impressas de rabiscos tingidos a negro. Um olhar rápido e ouvimos a voz de outra pessoa – talvez de alguém morto há milhares de anos. Através dos milénios, o autor fala, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas, cidadãos de distantes épocas, que nunca se conheceram. Os livros rompem as amarras do tempo, provam que o Homem é capaz de realizar magia.”

Carl Sagan


Depois, há a ameaça de segredos revelados nas palavras que escrevemos. Que partes de nós entregámos? Quantas te bastam? Quantas me perdem?

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Admirável Mundo Novo

Plagiei o título (mais ou menos). Não sei se se pode. E nunca li o livro (mais exactamente, “ainda não"), o que é, além de uma vergonha, um risco, porque, nas próximas linhas, posso vir a plagiar mais qualquer coisa, desta vez de forma não intencional e com menos competência ainda.

Adiante.

Dizem-me que o Miguel Sousa Tavares fez uma não-entrevista ao André Ventura, mas não tive paciência para ver. Há muito tempo que gosto mais de o ler do que de o ouvir. Ao primeiro. O segundo é um charlatão vaidoso e oportunista, defensor do direito de dizer uma coisa e o seu contrário sempre que isso sirva os seus intentos (pois, se calhar, não é modelo único) e que só ainda não atingiu o estatuto de estrela do semi-homólogo americano porque ninguém leva muito a sério um durão (assim mesmo, em modo de adjectivo, nada de confusões) que tem como animal de companhia uma coelhinha chamada Acácia, ou lá o é. Mas Portugal é um prodígio para lá dos fenómenos do Entroncamento e dos entendimentos nos Açores e, como tal, André Ventura vai ganhando palco. Um imenso palco. Ansiávamos pelo nosso “fascista” popularucho com a mesma avidez com que esperámos pelo nosso primeiro caso de Covid-19. Aí o temos, cheio de “eu faço”, a não ser que não faça, “eu aconteço”, a não ser que não aconteça, eu ameaço e nem preciso de esbracejar demasiado porque a desorientação que se instalou (“tem algum amigo preto”; a sério?!), da comunicação social à classe política, aquém e além mar, serve todos os propósitos destes santos de pau oco que a Democracia também alimenta, porque a Liberdade é a bela e é o monstro do nosso descontentamento.  Não sei há quantos dias anda o André Ventura nas bocas do nosso mundo, mas, ultimamente, a cada vez que o vejo – de relance, numa ameaça de flash noticioso –, parece-me mais jovial, mais solto, mais de bem com a vida, e percebe-se porquê. Percebe-se que ainda não se percebe bem qual a melhor maneira de lidar com aquilo, como não se percebeu  ainda qual a melhor maneira de lidar com ex-actual-ou-actual-ex-presidente dos EUA, que continua na sua senda negacionista, mimada e birrenta, com o mundo suspenso dos seus humores e das suas partidas de golfe: que outro regime político seria capaz de parir tamanho espectáculo? Há as ditaduras, sim, mas começam a ser bastante aborrecidas. Nada como deixar o povo escolher. Desde que sejamos nós a escolher o povo que deve poder escolher. Sem qualquer confusão, portanto.

 

Entre outras venturas e desventuras, há boas (aparentemente) notícias sobre os avanços relativamente à milagrosa vacina que vai tornar o nosso mundo normal outra vez, seja lá o que isso for. Veremos se este normal que não se pode dizer novo dará lugar a uma realidade que, em não podendo vir a chamar-se de velha, se aproxime, pelo menos, de algo suportável. Também ouvi qualquer coisa sobre a necessidade de renovar o estado de emergência, sucessivamente, tantas vezes quantas as que forem necessárias, até “esmagar” a danada da curva que teima em desafiar a nossa capacidade de resistência. Menos mal que aguentamos, não é?, como já nos garantiram em ocasião anterior. Entretanto, quer-se impedir que profissionais de saúde abandonem o SNS rumo aos hospitais privados, que o tempo é de pandemia e de colapso iminente dos serviços, enquanto os colégios privados perdem professores para as escolas públicas, porque os professores a mais que Portugal tem há anos, afinal não chegam para garantir o anormal funcionamento das aulas em tempo de covid. E sei bem que tudo isto merece maior reflexão e cuidado, mas ando mesmo, mesmo com pouca paciência. Como toda a gente, provavelmente. Percebo, aliás, que não tenho sido sequer capaz de ler o livro que tenho em mãos. Vou virando páginas sem dar acordo do que se passa dentro, as letras como uns gatafunhos medonhos tingidos de um negro a que não acho graça. Falta-me a tranquilidade necessária para pôr ordem nas linhas, sorvê-las com o mesmo prazer com que tomo o café acabado de fazer, numa chávena de louça, amargo e forte, puro e intenso como algumas das melhores recordações. Suspendo-o, por isso. Ao livro, já que o mesmo não posso fazer aos dias, a estes dias, e aguardo que a tempestade esmoreça e se desfaça num vento inquieto capaz de mordiscar as folhas sem as rasgar e de apressar o mar sem o dilacerar. 

Também soube que a Hungria e a Polónia vetaram o Orçamento Comunitário e o Fundo de Recuperação, a "bazuca" com que a União Europeia pretende ajudar os Estados-membros a minimizar os efeitos devastadores da pandemia sobre a economia dos diferentes países. Victor Órban e Mateusz Morawiecki não querem ver o acesso aos fundos europeus condicionado a coisas miúdas, como o respeito pelas regras do Estado de direito. Não há-de ser grave. Não há regra que não tenha a sua excepção nem direito que não possa ser beliscado. Tudo vai acabar bem. Mas, enquanto não chegam melhores ventos, aproveito o sol de Outono, que prefiro ao de Verão (como prefiro o de Inverno) porque aquece sem estalar e deixa na pele uma carícia suave que me reconcilia com a obrigação de usar máscara, de dosear os afectos, de evitar abraços, de fingir que os dias se aguentam melhor se afogarmos a saudade numa manhã como a de hoje.