"Houve
uma altura
em
que só a certeza me dava
alguma
alegria. Imaginem –
a
certeza, uma coisa morta."
Louise Glück, As Sete Idades
Aceitar a desilusão é aprender a dançar com as sombras suspensas na luz. Reconhecer que nem tudo permanece para lá da memória, que alguns encontros existem para durar o tempo exacto, e que deixar partir é mais uma forma de amor do que de ruptura. Como o mar que recua, deixando gravados na areia vestígios do que foi. A desilusão não é o oposto da sabedoria, mas a sua matriz primordial. Só a condescendência é insuportável. Só a condescendência me é insuportável. A vida é isto também, uma despedida contínua. Guardo o silêncio que fica, um toque de veludo, e que nunca temo porque me sustém.
Detenho-me
reverentemente na violência silenciosa do amor. Na sua devastação subtil. Profana.
O olhar que se demora sobre a pele, o fogo lento que consome os sentidos ainda
antes do primeiro toque; punhal envolto em seda. A crueldade fermentada dos
gestos mais ternos. A renúncia, a espera, o sangue latejando sob a linha do
pescoço, o corte limpo de uma ausência que se instala como febre. A solenidade
da entrega como catarse – arqueólogos da nossa própria ruína, sobre o
azul-cobalto da saudade em decomposição.
Sobre
a nacionalidade e os nossos valores: parece-me tudo muito bem. Se vamos
integrar pelo exemplo, podemos começar pelo do excelso secretário regional do
Turismo, Ambiente e Cultura da Madeira, ou pelo general-comentador Agostinho
Costa – se se pode chamar àquilo comentar: pelo que vi, é uma espécie de
monólogo, sofrível e febril (há outros canais de televisão onde a mesma pessoa
possa estar quase ininterruptamente durante treze minutos a pregar aos peixes?); e, embora eu
evite ao máximo usar do lamento em torno da misoginia – não porque não o considere
adequado tantas vezes, mas porque prefiro a estocada com recurso a outras armas –, não sei se
o major-general destrataria de forma tão estrídula a Diana Soller se a Diana
Soller não fosse uma mulher. Mas é. E muito
contida, ao contrário do seu detrator; por mim, tinha mandado o senhor à merda,
para usar uma utilíssima palavra do dicionário, como ensinou o outro senhor, o
da cultura.
De resto, estou para coisas simples. O calor deixa-me enjoada e impaciente, incapaz de seguir o fio dos acontecimentos; para além do julgamento do ano. O da Marques, não o do Marquês – este, se nenhuma das partes falecer entretanto, deve resolver-se pelo pagamento de uma bela indemnização ao arguido, que poderá, finalmente, retribuir ao generoso amigo a preciosa ajuda que lhe vem garantindo há anos, sem esquecer os cinco milhões de euros da herança da mãe. É o da Joana Marques que me intriga quase perversamente. Ando perplexa com a leitura que as advogadas dos queixosos têm feito sobre o assunto. Do bullying aos "limites do humor" ou da "liberdade de expressão", parece-me tudo estupidamente absurdo; quase amador. A coisa mais inteligente e sóbria que li sobre isto escreveu-a Francisco Mendes da Silva no PÚBLICO: “A acusação de que Joana Marques é uma bully, lançada amiúde, não faz qualquer sentido. O Extremamente Desagradável, a sua rubrica bandeira na Rádio Renascença, zomba dos fanfarrões e dos trapaceiros, da babugem presunçosa das “celebridades” e das vigarices dos “criadores de conteúdos”. É um programa sobre a volúpia de quem se apresenta ao mundo na mó de cima, ou numa posição de superioridade moral. O principal tema do humor de Joana Marques é o nosso narcisismo. É a falta de noção, a imodéstia desregrada, a propensão para o ridículo de que ninguém está imune. (…) E o seu talento mais visível, acrescento eu, é o de conseguir chamar a atenção do público, com o menor grau possível de intervenção humana, para o ângulo cómico de todas as situações.(…) Daí que um dos aspectos mais deliciosamente cómicos deste caso, dada a sua coerência com o processo criativo de Joana Marques, é a ironia de os Anjos estarem a ser gozados por Portugal inteiro, num cenário que a envolve, mas sem que ela tenha de alguma forma manipulado a realidade.”
Além de que o vídeo da discórdia nem sequer pertence ao alinhamento do “Extremamente Desagradável”, a versão integral é igual ou pior, e é possível que meio Portugal ou mais, onde me incluo, nem soubesse da sua existência antes disto. Os Anjos querem que o tribunal os absolva do ridículo que os próprios cavaram – não a Joana Marques, por muito que não se goste do humor que a Joana Marques faz.
É inacreditável o tempo que perdemos com isto. Mea culpa também. E não sou capaz de dizer que os Rosado não ganham. Os tempos andam assim para o estrábico.
"I Believe
I believe in steep drop-offs, the thunderstorm across
the lake
in 1949, cold winds, empty swimming pools,
the overgrown path to the creek, raw garlic,
used tires, taverns, saloons, bars, gallons of red wine,
abandoned farmhouses, stunted lilac groves,
gravel roads that end, brush piles, thickets, girls
who haven’t quite gone totally wild, river eddies,
leaky wooden boats, the smell of used engine oil,
turbulent rivers, lakes without cottages lost in the woods,
the primrose growing out of a cow skull, the thousands
of birds I’ve talked to all of my life, the dogs
that talked back, the Chihuahuan ravens that follow
me on long walks. The rattler escaping the cold hose,
the fluttering unknown gods that I nearly see
from the left corner of my blind eye, struggling
to stay alive in a world that grinds them underfoot."
Jim Harrison
Ainda
a propósito da fotografia de Sebastião Salgado.
Uma
das minhas preferidas é a daquela impressionante mancha de búfalos em
movimento, captada com precisão lapidar; ou a do homem de turbante e túnica, berbere,
talvez, sentado só, na areia das dunas de Ma’or Tadrart, comungando da vastidão
do deserto; os baobás de Madagáscar que parecem flutuar sobre a paisagem nevoenta,
ou os meninos Dinka, pastores, em sombras de cinza-claro, guardando o gado zebu.
A pata da iguana, o antebraço escamoso como “um guerreiro da Idade Média com a sua cota de malha de ferro”. São mais do que fotografias, e
nessa transcendência perene parecem quadros pintados à mão. Tal como o corpo de
Cristo no túmulo de Hans Holbein parece menos uma tela e mais uma escultura,
com as suas pinceladas refractadas e pontiagudas. Há talentos assim,
sobrenaturais, como nos contos de fadas: de mim, recebe o dom de esculpir o
assombro. Gravar na carne do tempo a sua própria memória.
De
resto, também gosto de Arvo Pärt, da chuva vertical e lisa como contas de
rosário, que molha apenas quem se permite. Aqui, a guerra ainda é uma sombra
parda, possível de dissipar com um movimento amplo de pensamento. Não se ouve o
zunir das bombas, não se vive no limiar do horror. Há um espaço entre notas
onde a beleza ainda perdura. Por um momento, nada no meu mundo parece seriamente ameaçado.
É
esplêndido, o meu luar. Vertido sobre o mar argênteo defronte, em noites de Lua
cheia, nacarada como uma pérola rara. Não me cansa nunca. O cheiro do mar pousado
na pele, o silêncio absoluto da noite que nem as gaivotas ousam pontuar. A
autoridade ainda intacta da natureza, soberana, imperando sobre o humor dos
homens.
Não o agora, mas o até aqui. O Homem é intrinsecamente mau, a bondade tem raízes biológicas menos fundas, e as conquistas civilizacionais esvaem-se com inquietante facilidade no conforto da liberdade vilipendiada. Emerge uma força antiga, ambígua, que nunca cessou de pulsar sob a crosta das convenções; o impulso de criação e de destruição, um desejo de ruptura mascarado de necessidade. Desvelação. A civilização é uma pele demasiado fina, sob a qual o monstro permanece alerta, incorrupto. “A crosta terrestre que esconde e abafa as explosões magmáticas”, enquanto, no seu ventre, a convulsão fermenta com vagar mineral, alheia à fé dos homens.
As
novas tecnologias não inauguraram perigos: expandiram-nos, aceleraram-nos,
refinaram-nos. Manipular a verdade, controlar a narrativa, construir um inimigo
são instrumentos antigos de poder. Foi a escala que mudou. A volatilidade do
tempo que demora a digerir a infâmia. Nessa pequena mudança, ampliou-se o bater
de asas que fará ruir as democracias.