sexta-feira, 28 de março de 2025





quarta-feira, 26 de março de 2025


Finjo que não vejo

como o teu olhar se demora na minha boca, na curva latente do meu pescoço.

Finjo que não vejo o suspenso de ti, a hesitação. A tensão, o fio rubro da navalha no limite da minha pele. O silêncio rouco do abismo.



sábado, 22 de março de 2025


Aqui, a Terra ainda não parou de rugir. O vento ainda uiva por entre as frinchas da chuva, e sou capaz de jurar que as paredes continuam a ranger em agonia.

Passei há pouco pelas ruas de árvores mutiladas. São dezenas. As que se mantêm de pé estão despidas e baças; os ramos que sobram, como esqueletos agitando-se freneticamente contra um céu de fim-de-mundo. As que jazem ainda por recolher parecem ter sido arrancadas à mão. É desolador. O vizinho do quarto andar lamenta-se com espanto, mas se eram árvores de cem anos!, dizem que foi da direcção do vento... Talvez. A quem olha agora a aparente superficialidade e fragilidade daquelas raízes desfiadas parece mais espantoso terem-se mantido de pé até há dois dias. A mim parece-me.

Há sempre uma certa solenidade na revelação furiosa da Natureza, no silêncio quieto que sobra sobre os escombros.



quinta-feira, 20 de março de 2025

 

Saí bastante cedo. Na rua, parecia que tinha havido o que houve: uma tempestade relativamente violenta. Árvores esventradas, os ramos espalhados por todo o lado, várias ruas cortadas por outras árvores, enormes, rasgadas e mortas; um carro completamente esmagado por um tronco imenso, que nem percebi bem de onde terá vindo; um sinal de trânsito vergado sobre a estrada, baloiçando ao sabor do vento como um abanico imprestável. O exercício extraordinariamente penoso que é ouvir falar a ministra Margarida Blasco.


segunda-feira, 17 de março de 2025




 

Adolescência

 



Nem é pela história em si. A adolescência é aquele lugar de vertigem. A descoberta, a imprudência, a ousadia. O tempo tem outra dimensão. As amizades são pactos de sangue, refúgios contra a incompreensão dos adultos; os amores são intensos, e a rejeição pode ser devastadora. Não sei se há uma fórmula para evitar a tragédia. São pequenas tentativas, absurdas, às vezes, mas, estar presente e estar atento talvez sejam as mais eficazes. Foi o que tentei sempre, com alguma impertinência à mistura, como proibir o telemóvel e o computador no quarto à noite durante alguns daqueles anos (acabou de cumprir 18), ou portas fechadas à chave por dentro; enfim, a inglória ilusão de mandar.

Nem é pela história, dizia; é por todo o resto, e, principalmente, pela actuação de Owen Cooper, na pele de Jamie Miller, o tal adolescente de treze anos acusado de esfaquear uma colega de escola. Quatro episódios fantásticos (talvez menos o segundo), e sou capaz de ter deixado de respirar no primeiro e no terceiro.


domingo, 16 de março de 2025

Camilo Castelo Branco


Anátema foi o primeiro livro que li de Camilo Castelo Branco, muito antes do Amor de Perdição dos programas escolares. Os meus pais tinham aquela colecção inteira do Círculo de Leitores, de lombada castanha e letras douradas; a de Júlio Dinis era verde, como a de Eça, com um decorativo diferente.

Deixei-me seduzir pela palavra no título. Anátema. Fui ao dicionário. Excomunhão, maldição, vingança. Antes tudo isso do que uma tarde ao sol agonizante de Agosto, que eu sempre suportei melhor mergulhada em livros. Sou de Novembro, do frio cinzento, do sol que aquece com o aveludado de uma carícia. Do tempo em que as férias de Verão se eternizavam sem piedade. Não fossem as estantes de livros que sempre encheram a casa dos meus pais – minha, metade da minha vida – e morreria todos os Agostos.

Guardo na boca as palavras de que gosto. Mastigo-as até que se dissolvam no fundo de mim. Anátema. Cortava como uma lâmina. Lembro-me de ter lá ficado, depois de o livro acabar.


quinta-feira, 13 de março de 2025


O corpo, marcado pelo trauma, escapa ao silêncio e faz-se retrato de cores vivas sangrando histórias. Pintar o abismo sem temor, sem pudor, no limite do suportável. A carne rasgada, o coração aberto, o sonho a morte, a beleza crua que emerge, lúcida, do tormento. A mulher ao espelho, de frente, desafiando os seus fantasmas. Há véus de cinza separando mundos, onde o frio não cede ao tempo e o tempo se dissolve na lonjura da memória. Florestas feridas convocando os mortos, a luz zunindo no ventre das pedras, namorando, sem entrega, as sombras de renda salgada, e o rio negro, vagando sem pressa sobre a própria eternidade. Lento, imutável. Impostor.



quarta-feira, 12 de março de 2025




 

Circunstancialmente...

António Costa ainda não deve ter acabado de agradecer a nossa senhora o famoso parágrafo que o levou a Bruxelas. Portugal está condenado à ingovernabilidade. Há um crepitar de acontecimentos que embrutece o pensamento. Vi parte do espectáculo de ontem, e indecoroso aplica-se-lhe bem. A questão é: e isso interessa a quem?

A análise política tomou artes de adivinhação. É impossível racionalizar sobre o irracionalizável. Noutros tempos, com outro Presidente da República, talvez Luís Montenegro fosse convidado a sair (por indecente e má figura?) e o PDS, a apresentar outro nome para primeiro-ministro. Ter-se-ia evitado a degradação a que chegámos, que, para isso, já bastam aquelas cinquenta avantesmas; mas temos uma inexplicável, e incontrolável, atracção pelo martírio. 

Luís Montenegro é o principal responsável pelo descalabro. Venha ou não venha a ver legitimado pelo voto o expediente manhoso que defende com dramas de Shakespeare. Com excepção dos tontinhos, nenhum dos seus mais histéricos defensores consideraria aceitável a posição em que o primeiro-ministro se colocou (e ao governo com ele) se o primeiro-ministro fosse da oposição. Não tem nada que ver com o direito à vida própria – profissional, social, familiar – para lá da política, essa é ladainha do fingimento, por sinal, bastante desonesta; nem merece discussão tão evidente é o desconforto entre alguns membros do próprio partido. 

Tragicamente, não se vislumbra melhor caminho. PSD e PS, com maior ou menor descaramento, têm feito o possível por garantir a mediocridade da acção política. Mais do que mediocridade: mesmo sabendo que a política também vive da encenação, como é que aquela gente será capaz de se sentar à mesma mesa para discutir o que quer que seja, mais ainda, o futuro de um país?