sexta-feira, 4 de abril de 2025


Nem sabia o que era um picker, o que diz muito do meu alheamento de algum do mundo real. Não compro muitas coisas online, mas compro coisas online: obviamente, tem de haver alguém que recolha o meu pedido e o faça chegar a outro alguém que mo possa enviar, desencadeando-se – a partir daquele meu clique para efectuar pagamento – um mecanismo em roda dentada de procedimentos essenciais invisíveis aos meus olhos, mas muito pouco românticos. "On Falling", de Laura Carreira tenta ser um retrato sensível dessa precariedade laboral, filmando a rotina exaustiva da protagonista com uma precisão quase documental, mas a insistência em composições melancólicas e um ritmo ostensivamente contemplativo acaba por esvaziar um pouco a mensagem, tornando a sequência bastante previsível em alguns pontos, e um pouco forçada noutros, até com alguma ingenuidade. Não adorei, embora haja momentos de filmagem muito bons – desde logo, o inicial, que retrata a chegada dos funcionários ao armazém: Laura Carreira, à conversa com o público no final da sessão, confessou ter demorado a habituar-se àquela porta giratória de entrada, mas considero-a uma das cenas mais impactantes do filme. Depois, faltou uma progressão dramática convincente. Há um certo vazio, uma passividade consciente e exagerada na trajectória de Aurora – bem interpretada por Joana Santos – que vai além de um reflexo do trabalho robótico e alienante. Embora a ideia original seja realçar a culpa do sistema que explora e desumaniza, é evidente, ali também, a importância de cada uma das nossas opções pessoais. Disse-se muito – a própria actriz – sobre a necessidade latente de estabelecer contacto com o outro, o desejo de intimidade de Aurora, encurralada na sua solidão mecânica, mas, a mim, pareceu-me sempre mais o contrário, Aurora entregue à estanquicidade do seu telemóvel, como, daí a pouco, a mulher ao meu lado: uma mão levando à boca a canja de galinha, a outra correndo o écran, interminável, apesar dos amigos que a traziam. Há muito do inferno dos outros em nós.





 

quinta-feira, 3 de abril de 2025

A Morte dos Jacarandás

Luís Montenegro é, por estes dias, um homem feliz. Habita-o a certeza de ter jogado uma cartada de mestre; daí o sorriso escarninho que não o abandona há semanas. Conhece bem as regras não escritas da cultura democrática portuguesa. Obviamente, não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português – só faltou acrescentar que só não o fazem os portugueses que não podem (os ingénuos não contam). Se o PS tivesse visão, como se diz, talvez tivesse escolhido José Luís Carneiro em vez de Pedro Nuno Santos como Secretário-Geral. Os portugueses prodigamente invocados nas homilias políticas talvez não levem muito a sério as acusações de leviandade de alguém que traz colado a si o episódio whatsapp na gestão da TAP. Todos os políticos são iguais, mas há éticas mais estéticas do que outras. Entretanto, não percebi nada daquilo do Bolhão, porque cheguei tarde e a más horas e sem paciência para. 

Em Lisboa, levantou-se um protesto em defesa dos jacarandás da 5 de Outubro – petições de cinquenta mil assinaturas e gente que ameaça amarrar-se às árvores. É sabido que não gosto de jacarandás. Enjoa-me o cheiro, exaspera-me aquele rasto pegajoso que vai sobrando sobre a calçada e prefiro o roxo intenso ao azul-lilás. Não há quadro capaz de me convencer da beleza da coisa. Outra gente aponta a extravagância de nos erguermos contra o abate de árvores, mas não contra a justiça que permite a três sacanas prosseguir a actividade influenciadora sendo suspeitos com provas dadas em tictoks de terem violado uma miúda de dezasseis anos. Alegadamente. Excepto pela publicação infame, parece que demonstradamente. São novos, não têm cadastro, não estudam, não trabalham e ganham dinheiro com uma espécie de "esquema Ponzi piramidal que está no limiar do crime". Não há “Adolescence” que nos cure disto. 


sexta-feira, 28 de março de 2025





quarta-feira, 26 de março de 2025


Finjo que não vejo

como o teu olhar se demora na minha boca, na curva latente do meu pescoço.

Finjo que não vejo o suspenso de ti, a hesitação. A tensão, o fio rubro da navalha no limite da minha pele. O silêncio rouco do abismo.



sábado, 22 de março de 2025


Aqui, a Terra ainda não parou de rugir. O vento ainda uiva por entre as frinchas da chuva, e sou capaz de jurar que as paredes continuam a ranger em agonia.

Passei há pouco pelas ruas de árvores mutiladas. São dezenas. As que se mantêm de pé estão despidas e baças; os ramos que sobram, como esqueletos agitando-se freneticamente contra um céu de fim-de-mundo. As que jazem ainda por recolher parecem ter sido arrancadas à mão. É desolador. O vizinho do quarto andar lamenta-se com espanto, mas se eram árvores de cem anos!, dizem que foi da direcção do vento... Talvez. A quem olha agora a aparente superficialidade e fragilidade daquelas raízes desfiadas parece mais espantoso terem-se mantido de pé até há dois dias. A mim parece-me.

Há sempre uma certa solenidade na revelação furiosa da Natureza, no silêncio quieto que sobra sobre os escombros.



quinta-feira, 20 de março de 2025

 

Saí bastante cedo. Na rua, parecia que tinha havido o que houve: uma tempestade relativamente violenta. Árvores esventradas, os ramos espalhados por todo o lado, várias ruas cortadas por outras árvores, enormes, rasgadas e mortas; um carro completamente esmagado por um tronco imenso, que nem percebi bem de onde terá vindo; um sinal de trânsito vergado sobre a estrada, baloiçando ao sabor do vento como um abanico imprestável. O exercício extraordinariamente penoso que é ouvir falar a ministra Margarida Blasco.


segunda-feira, 17 de março de 2025




 

Adolescência

 



Nem é pela história em si. A adolescência é aquele lugar de vertigem. A descoberta, a imprudência, a ousadia. O tempo tem outra dimensão. As amizades são pactos de sangue, refúgios contra a incompreensão dos adultos; os amores são intensos, e a rejeição pode ser devastadora. Não sei se há uma fórmula para evitar a tragédia. São pequenas tentativas, absurdas, às vezes, mas, estar presente e estar atento talvez sejam as mais eficazes. Foi o que tentei sempre, com alguma impertinência à mistura, como proibir o telemóvel e o computador no quarto à noite durante alguns daqueles anos (acabou de cumprir 18), ou portas fechadas à chave por dentro; enfim, a inglória ilusão de mandar.

Nem é pela história, dizia; é por todo o resto, e, principalmente, pela actuação de Owen Cooper, na pele de Jamie Miller, o tal adolescente de treze anos acusado de esfaquear uma colega de escola. Quatro episódios fantásticos (talvez menos o segundo), e sou capaz de ter deixado de respirar no primeiro e no terceiro.


domingo, 16 de março de 2025

Camilo Castelo Branco


Anátema foi o primeiro livro que li de Camilo Castelo Branco, muito antes do Amor de Perdição dos programas escolares. Os meus pais tinham aquela colecção inteira do Círculo de Leitores, de lombada castanha e letras douradas; a de Júlio Dinis era verde, como a de Eça, com um decorativo diferente.

Deixei-me seduzir pela palavra no título. Anátema. Fui ao dicionário. Excomunhão, maldição, vingança. Antes tudo isso do que uma tarde ao sol agonizante de Agosto, que eu sempre suportei melhor mergulhada em livros. Sou de Novembro, do frio cinzento, do sol que aquece com o aveludado de uma carícia. Do tempo em que as férias de Verão se eternizavam sem piedade. Não fossem as estantes de livros que sempre encheram a casa dos meus pais – minha, metade da minha vida – e morreria todos os Agostos.

Guardo na boca as palavras de que gosto. Mastigo-as até que se dissolvam no fundo de mim. Anátema. Cortava como uma lâmina. Lembro-me de ter lá ficado, depois de o livro acabar.