O filho de uma grande amiga – a amiga que me liga para
nos ouvirmos rir, aquela com quem tenho uma relação quase telepática – está,
neste momento, na Suécia a fazer parte do mestrado. Recebi a mensagem na
segunda-feira ao fim da tarde: uma fotografia do pequeno caderno de instruções
sobre o que fazer em caso de guerra. Num primeiro e brevíssimo instante pensei
que era uma piada.
Pragmáticos, os suecos.
Março de 2020; o vírus que vinha da China – ou talvez
não, tinha escapado de um laboratório em Wuhan, não, não era possível,
mostravam os estudos genéticos, talvez sim, afinal os estudos não são
conclusivos, enquanto as vacinas são seguríssimas, ou se calhar não. Era a
maior ameaça ao mundo que me cabia. Imperava um medo fraterno. A bondade não
emergiria das cinzas para suturar a ponto arco-íris as chagas da humanidade,
mas havia um embrião de esperança. Estávamos em guerra, quando a guerra
podia ser invocada em vão, impunemente, poeticamente, sem agravo nem remorso.
Foi ontem, e foi como se se tivesse passado um século. O novo normal deu
lugar ao mundo mudou. Uma mutação orgânica, febril, corrosiva, um corpo
vivo que se contorce e regenera perpetuando a sua própria fragilidade.
Ando obcecada, furiosa, perplexa, fascinada. A zona de
interesse ruiu; resta este entre-lugar, movediço, imparável, de onde só se
regressará a ferros, rasgando ventres e carregando as dores. Só a noite me
parece inviolada; é nela que te guardo e reconheço.