sexta-feira, 24 de janeiro de 2025




 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Um Problema de Três Corpos


A atracção gravitacional entre três corpos celestes torna impossível prever com exactidão os seus movimentos a longo prazo, criando trajectórias caóticas e imprevisíveis que podem conduzir ao caos e à aniquilação...


O fracasso de André Ventura (pelo menos, de momento) é não ter patifes à altura. Passado o amadorismo, por grande que seja o entusiasmo, a maldade exige madurez e inteligência. Roubar malas no aeroporto de Lisboa – como mugir à aproximação de deputadas eleitas na Assembleia da República ou berrar encostem-nos à parede – pode saciar raivas de pavio curto, mas não faz rolar a máquina de propaganda capaz de eleger um Donald Trump: Ventura sonha, mas lidera apenas um grupo de arruaceiros, e do mais medíocre. O nosso drama, quando se olha o panorama geral, é que talvez seja suficiente. Já temos o líder do Chega-Açores a defender a honra de Arruda, jurando, indignado, que, também ele e por mais de uma vez, se enganou e agarrou numa mala que não era sua, num qualquer tapete rolante de um aeroporto perto de si. Quem nunca, não é? É capaz de colar. Quem não tem cão, caça com gato, que é como quem diz, uns contornam a Lei, outros, o tapete mais perto.

A propósito de patifes.

Entre o nojo e o embevecimento, há-de haver um caminho mediador de olhar os próximos quatro anos do reinado de Trump. O meu desejo de ano novo é ver o quadragésimo sétimo presidente dos EUA cumprir tudo o que prometeu cumprir. Que não haja impedimentos à sua acção revolucionária, por mais aberrante, enquanto a maioria do povo americano o quiser: ou o homem fará a América grande outra vez, eventualmente, na versão T50 + 1 e uns anexos, e salvará o mundo sem morrer pelos nossos pecados, ou a legião de apóstolos que o elevou a deus beberá da sua ira. Dois mil e vinte e cinco começa agora, e é política em tempos de cólera. 

Ando há dois dias a cantar a Nikita do Elton Jonh, depois de ver Melania Trump no seu impecável, formidável, uniforme azul e chapéu de abas largas. Vá lá saber-se porquê. Conto estrelas à noite, quando a noite não é de trovoada, e hei-de ir ver a valsa dos pirilampos, como Kazuaki Kozeki, nas florestas do Japão.





quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

 

A Luisinha guardava o cadáver de uma cobra preservado em álcool, num enorme frasco de vidro transparente. Durante toda a tarde, de segunda a sexta-feira, a cobra permanecia à vista, pousada na mesinha da sala, adormecida no seu túmulo cilíndrico, guardando os meninos que ainda não iam à escola e a quem a Luisinha ensinava a ler e a escrever. A cobra era a guardiã severa, escamada e amarelenta, implacável na sua mudez de vidro. Ai de quem se portasse mal… A Luisinha nunca abriu o frasco, eu aprendi a escrever cobra e nunca mais soube dos outros meninos.


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

 




Pedi ao ChatGPT para me criar um cartão de Boas Festas. Não ficou grande coisa, porque é preciso saber pedir, e, evidentemente, falta-me o jeito. À terceira tentativa, esgotei a gratuitidade da generosidade artificial e saiu aquilo. Mas não ficou péssimo, e sempre posso compensar com a genuinidade da minha mensagem: um Bom Natal a todos os que passam por aqui, até para quem não é de Natal. Para mim, este é, essencialmente, um tempo de estar, um tempo de afecto, de abraços, de bem-querer – são esses os meus votos para quem aqui vier.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Não gosto de andar de avião. Não deixo de viajar por andar de avião, mas não gosto de andar de avião. Adopto e adapto estratégias – algumas quase infantis – para iludir o desassossego da viagem, juro furiosamente que não tenho medo, e, sempre que as condições mo permitem, leio. Tenho uma certa inveja daquela gente que lê em qualquer lugar, um qualquer número de páginas, numa brecha mínima de tempo: não imagino os meus dias sem livros, mas não leio na praia, não leio em filas para coisa nenhuma, não leio na cama e o avião é o único meio de transporte onde posso tentar a leitura – de carro ou de comboio enjoo às primeiras linhas. Manias. Também não tomo café em copos de plástico, nem vinho em copos sem pé – já contei.

A última viagem de avião foi longa e perfeita. Pude ler, e li “O Meças”, de José Rentes de Carvalho. De uma honestidade brutal e crua. Como sempre. Uma lâmina afiada, que penetra fundo e sem concessões na alma de um Portugal esquecido, à margem do progresso, rural. Talvez até já inexistente, não sei, como tantos outros portuguais esquartejados pelo autor, suponho que entre o fascínio e a repulsa, como ali se lê. Ou eu li. Parece simples (há quem lhe chame hiperliteratura), mas não é.


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

“O que me inebriou quando voltei a Paris, em setembro de 1929, foi, em primeiro lugar, a minha liberdade. Sonhara com ela desde a infância, quando brincava “às senhoras” com a minha irmã. Já contei como esperava apaixonadamente por ela, quando estudante. Subitamente, tinha-a ao meu alcance; a cada gesto, espantava-me com a minha disponibilidade. De manhã, mal abria os olhos, entrava em grande agitação, rejubilava. Por volta dos meus doze anos, sofri por não ter em casa um cantinho meu. Ao ler no Mon Journal a história de uma colegial inglesa, tinha contemplado com nostalgia a estampa que representava o quarto dela: uma pequena secretária, um sofá, prateleiras cobertas de livros; entre aquelas paredes de cores vivas, ela trabalhava, lia, tomava chá, sem testemunhas: como a invejava! Pela primeira vez me apercebi de uma existência mais favorecida do que a minha. E agora, afinal, também eu estava em minha casa! A minha avó tinha libertado o seu salão de todas as poltronas, mesinhas e bibelots. Comprei móveis de bétula, que a minha irmã ajudou a escurecer com verniz castanho. Tinha uma mesa, duas cadeiras, um grande baú, que servia também de assento, estantes para os livros, um sofá a combinar com o papel alaranjado que pus nas paredes. Da sacada do meu quinto andar, dominava os plátanos da Rue Denfert-Rochereau e o leão de Belfort. Tinha um fogareiro vermelho, a petróleo, e que cheirava mal; parecia-me que deste cheiro dependia a minha solidão, e gostava dele. Que alegria poder fechar a porta e passar dias ao abrigo de todos os olhares! Durante muito tempo fui indiferente à decoração dos lugares em que vivia; talvez por causa da imagem do Mon Journal, preferia os quartos com sofá e prateleiras, mas qualquer sítio me servia; ainda me bastava poder fechar a porta para me sentir plenamente satisfeita.”

A Força da Idade, Simone de Beauvoir


“Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”


Que o diga o Almirante, de olho verde e voz de comando, astuto submarinista no mar de destroços em que se tornou o cenário político português.


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Já o disse antes: por vezes, a minha mente corre por caminhos desconhecidos e contra a minha vontade. Não imagino onde terá ido buscar aquele imaterial, se poucas coisas há mais materiais do que um edifício sólido. Talvez o imaterial do tempo que me transporta a outras épocas, mas não era exactamente nisso que pensava. Creio.

A propósito, quero muito voltar a Notre-Dame. Só lá entrei duas vezes, num tempo anterior ao incêndio devastador de há cinco anos, quando a Catedral era negra, sombria e bela. Agora, nos jornais e nas televisões, parece-me tão radiosa e limpa que temo tê-la perdido para o sempre que me resta.  


O imaterial também pode envelhecer mal. O Coliseu de Lisboa envelheceu mal. Carrega o peso do tempo com a decadência dos desvalidos.

De resto, a mulher ao meu lado cabeceou o concerto inteiro; por pouco, sobre o meu ombro. Sobressaltava-se a cada ovação, e, então, aplaudia energicamente como se não tivesse perdido uma nota. Estive tentada a pedir-lhe para trocar de lugar comigo, contra o desperdício da vista tão mais generosa. Mas quase não se viram telemóveis no ar e o concerto foi bom. O arranjo de Mário Laginha do Grândola Vila Morena é fantástico, o rufar dos pianos soberbamente interpretado pelos dois. Descobrir com prazer Out of Order, de Luís Tinoco; a bonita e sóbria homenagem a Bernardo Sassetti. E no fim, o rumorejar da sala embalando, baixinho, o refrão do Venham mais cinco. Foi realmente bonito. Mário Laginha e Pedro Burmester estavam felizes e tocaram com uma alegria tangível.

Bach será sempre Bach. Também de clássicos se fez o concerto, logo de início, ainda a mulher não dormia.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

“Cem Anos de Solidão” é um livro assombroso. Se há clássico que não acaba de dizer o tem para dizer (outra vénia para Italo Calvino), a obra-prima de Gabriel García Márquez é um desses: é preciso voltar; e voltar; e voltar. É sagrado. Adaptá-lo ao écran, numa série da Netflix, soa a heresia. García Márquez, que nunca aceitou ver o seu livro filmado, bem pode praguejar do Além, esconjurar os filhos: já tinham decidido publicar-lhe o “Vemo-nos em Agosto”, agora trazem a solidão de Macondo para a televisão, na sua narrativa circular e maldita.

“Vemo-nos em Agosto” devia ter ficado na gaveta, também concordo, mas a série que a Netflix acaba de estrear parece não violentar a arte de García Márquez, como se temia (se calhar só eu). Vi os dois primeiros episódios e achei realmente belo. Competente e belo. Não é o livro, não é suposto, mas, de momento, sobrevive soberbamente à sua própria maldição.