quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Nesta margem, a avenida é limpa e o bairro é chique. Há um leve cheiro a jasmim, e edifícios elegantes e esterilizados do outro lado da rua. Observo-os, perdida por detrás da lente da minha máquina fotográfica. Os outros seguem mais à frente. Os miúdos riem e falam de coisas que, à distância, apenas adivinho. É espantoso, o tanto que têm para conversar, juntos as quase 24 horas dos dias de férias.

As árvores balançam com graça os seus ramos esguios, derramando, sobre o chão escaldante, sombras negras, irrequietas, que logo escoam céleres pelos sumidouros rendilhados que o sol torna mais brilhantes.

Vou distraída. Demoro um pouco a perceber que o homem se dirige a mim, em passo largo. Um passo largo. Nem vi de onde veio, materializou-se diante de mim, moreno de cabelo curto e negro, fardado; parece-se com um segurança. Levanta a mão sem me tocar, não lhe entendo uma única palavra, mas sei que me manda parar. Percebo, intuitivamente, que fiz algo que não devia. Uma fotografia. Aponta para a minha máquina e mantém-me refém de uma suposta autoridade que me confunde. Continua no meu caminho, impassível, e sinto o calor apertar-me mais. Os outros, lá adiante, parecem distraídos. Não tarda, escapam-se à esquina da rua e deixarei de os ver. Amaldiçoo-me por me ter deixado ficar tão para trás, eu e os meus malditos instantes. Irrepetíveis, urgentes. Inadiáveis.

Continuo a encarar o homem na minha frente. Estou agora certa de que se trata de um problema com alguma ou algumas das minhas fotografias. Mostro o écran da máquina e pergunto se devo apagar alguma coisa – não desconfio o quê –, imaginando que me faço entender de algum modo. Segura na mão um walkie-talkie obsoleto que aproxima do rosto enquanto olha para mim. Fala com alguém, e é evidente que aguarda instruções. A esquina está cada vez mais próxima, mas não quero chamar. Receio elevar demasiado a voz, denunciar-me na aflição tonta que me agonia. O riso das crianças chega-me já encolhido, pálido, e o calor também me ameaça.

Perco-me por momentos, entre as sombras e os cantos do tempo, até o homem começar a chamar-me, uma cacofonia insistente e confusa. Acaba por tocar-me no braço, à altura do cotovelo, leve, mais suavemente do que sugere o enorme chinfrim em que pretende que eu o entenda. Mas compreendo que posso ir, afinal, com a minha máquina e as minhas fotografias intactas. Num devaneio inútil, desejo, intimamente, poder entender e fazer-me entender todas as línguas do mundo.

Acabam de chegar à esquina quando se voltam, finalmente, para trás. Mas já está tudo bem. Volto a escutar as gargalhadas cristalinas, inocentes e alegres como antes.


quarta-feira, 16 de outubro de 2024




 

Perturbador

Há dias em que me deixo maravilhar pelo fenómeno Trump. O ex e parece que inevitavelmente próximo presidente dos Estados Unidos da América continua a acreditar (ou a fingir: para o caso e para a causa, é indiferente) que lhe roubaram a eleição de 2020; instigou os seus apoiantes à insurreição; não se demarcou dos cânticos que apelaram ao enforcamento de Mike Pence; promete perseguir e mandar prender opositores políticos; propõe um dia de purga, uma hora, vá, one really rough hour, para que a polícia possa fazer o seu trabalho livre de pressões políticas – que é como quem diz o que toda a gente suspeita –; incita permanentemente ao ódio, não só contra imigrantes, mas contra todos os que ousam dizer-lhe não; alimenta teorias conspiratórias que passam, agora, pela manipulação de fenómenos meteorológicos – de “semear” nuvens para produzir localmente chuva em regiões afectadas por secas, coisa possível, à criação de furacões obedientes, guiados como mísseis para atingirem deliberadamente estados republicanos. E, no entanto, surge como o candidato inabalável, imbatível. Intriga-me. Estúpidos ou não, não é (apenas) economia: diz quem sabe, a economia não está pior sob a administração Biden, antes pelo contrário.

Nada disto é novo, no entanto. Só nunca tinha sido omnipresente, creio.

Donald Trump emergiu como figura política altamente, visceralmente, polarizadora, para se transformar num fenómeno cultural e sociológico de quase culto. O quase é para não deixar morrer a (minha) esperança. 

Há os seus apoiantes incondicionais, capazes de embarcar em qualquer uma das realidades alternativas que o guru lança como pregões sobre a multidão em transe. O herói anti-sistema, um enviado de Deus, se não mesmo o próprio. Depois, há os cínicos. Não se sentariam à mesa para jantar com um patife daqueles, um narcisista sinistramente irritante, mas vêem em Donald Trump um veículo eficaz para aplicar a sua própria agenda; não destruir, mas moldar o tal sistema à imagem dos seus interesses, manobrando nos bastidores enquanto o show se desenrola, entretendo as massas. Será Donald Trump um político astuto ou um joguete nas mãos de vilãos mais poderosos? A História há-de mostrar, mesmo condenada a nunca ensinar.

Donald Trump tem esse carisma autoritário, repugnante, sociopata, que há-de alimentar sempre o fascínio pela transgressão, a ilusão de segurança pela força bruta, olho por olho, dente por dente, a coragem de romper convenções. E o espectáculo. A política americana sempre viveu do espectáculo. A democracia americana e a sua sociedade civil aguentarão melhor um segundo mandato de Trump ou uma nova derrota do republicano, desta vez para uma mulher que ele despreza (como, de resto, desprezará todos os que fazem questão de deixar claro que não estão para o adorar e servir)? Pacificamente, Donald Trump parece ser incapaz de aceitar até a própria vitória.  


terça-feira, 15 de outubro de 2024




 
Para ouvir à chuva morna que se vê daqui.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

André Ventura só tem uma palavra: uma diferente a cada intervenção pública.

Não ponho as mãos no fogo por Luís Montenegro (tinha boa impressão de Carlos Moedas e bastou-lhe a Câmara Municipal de Lisboa para a pose de pequeno imperador, ou seja, não percebo nada disto, se dúvidas houvesse), mas desconfio mais da abnegação do líder do Chega: o primeiro-ministro promete-lhe a cenoura que ele deseja e persegue desde Março e Ventura declina saciar a fome que o consome noite e dia. Pois. E não chamem “extrema-direita” àquela turma de patetas que compõem a bancada do Chega, é preciso um pouco mais do que vestir-lhe(s) a pele. Nem para cata-ventos, que esses ainda têm préstimo.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Wildlife Photographer of the Year


 



Há anos que um amigo me avisa: vivemos (a caminho do pretérito imperfeito...) em paz há demasiado tempo. Aqui, no admirável mundo ocidental, convencidos da nossa superioridade moral, social, cultural e tal, tão embevecidos com a rotina e a ordem democrática que amolecemos no embuste embalado da normalidade, da igualdade, da unidade, e por aí adiante, mas pouco, para não sair da linha. Estamos nessa zona de interesse. O abismo é mesmo ali ao lado, mas escolhemos não ver. Ou escolhíamos, não sei. Portugal parece tão distante dos Infernos mais próximos que podemos manter os olhos fechados por mais algum tempo, brincar aos orçamentos, anani-ananão, cedes-tu-eu-não, ignorar a falência do Estado, porque, afinal, apesar de tudo e do resto do mundo, vivemos num cantinho do céu, diz a dona Berta da confeitaria.

Cumpriu-se um ano sobre o ataque infame do Hamas. O horror do 7 de Outubro tornou-se no elixir da impunidade de Benjamin Netanyahu e do seu implacável exército. Dizem que não sabe nada de História quem se atreve a questionar o modo e o método da “legítima defesa” de Israel. Ignorantes ou anti-semitas. Não há espaço para olhar aquela orgia de morte e destruição e questionar. Se os palestinanos abandonassem as armas haveria paz, se Israel abandonasse as armas, não haveria Israel, como é que insistimos em complicar? 

O Hamas e o Hezbollah são organizações terroristas, políticas ou não, assumidamente empenhadas em destruir Israel e a causa palestiniana deve ser a última das suas preocupações (tal como os reféns israelitas para Netanyahu), mas dificilmente terão capacidade para tal, mesmo com o apoio do Irão. Israel é uma potência militar significativa, com um exército moderno, eficaz, um sistema de defesa avançado e possui considerável apoio internacional. Não é um Estado em risco de desaparecer. Não pela via militar. 

Mesmo que não se lamente (e eu não lamento) a morte dos responsáveis pela barbárie de há um ano, ou a extinção de regimes como o do Irão, onde mulheres sob custódia policial podem ser assassinadas por não cobrirem devidamente o cabelo, a solução não pode passar pelo extermínio de populações inteiras e pela destruição completa da terra, que ambos, judeus e palestinianos reclamam como sua com base em razões e argumentos históricos e religiosos que assistem às duas partes. É uma carnificina sem fim, alimentada pela vingança, mais do que pelo direito à defesa, e por uma embriaguez de guerra capaz de amputar qualquer resto de humanidade. Se há exército e inteligência capazes de ataques cirúrgicos aos seus inimigos é Israel, pelo que, quanto de História é preciso saber ou lembrar para rejeitar a perseguição predatória de um povo?

Vale-me o Outono. A transmutação lenta das cores na sua vaidade decadente; a luz dourada emoldurando aquele grupo de gaivotas que repousam no telhado em frente. E os meus livros. Não há vida sem livros. Talvez o céu se pareça com isto, dona Berta.


sábado, 5 de outubro de 2024

terça-feira, 24 de setembro de 2024




 


As mãos repousam no colo, como pássaros mortos. Tem o cabelo preto e liso, brilhante como asfalto fresco. Ri fechando os olhos, e o rosto ilumina-se; um campo de girassóis abertos. A pele é negra; o negro fértil das estepes que largou com saudade, negra como as noites sem lua, abrigo murado de histórias em versos rasantes, lapidando memórias.