terça-feira, 12 de agosto de 2025





sexta-feira, 8 de agosto de 2025


O cheiro limpo dos lençóis apenas uns segundos antes do despertador. E nesses segundos, o silêncio denso e seco que prolonga o vazio do meu sono de morte: nem uma memória, um sobressalto, o mais breve bulir de um sonho. O que diria Freud do meu sono uterino, que me devolve inteira ao princípio de mim?

Um vazio branco e limpo como os lençóis onde me abrigo. Nem sequer o clamor estrídulo das gaivotas. Parece-me haver cada vez mais, e suporto-as cada vez menos. Poderia facilmente abater aquelas duas, aninhadas no telhado defronte. Às vezes tenho maus pensamentos pela manhã. Para me redimir, regresso à estrada de ventre ondulado, até ao cimo da serra, para ver o meu mar longe de casa. Conto-te, com vagar e rigor, tanto e quase nada, ao ouvido do vento leve e fresco dos últimos dias. Solto-te sobre o vazio nascente e deixo-te partir.


quinta-feira, 7 de agosto de 2025

"O direito é o justo e o verdadeiro.

O que é próprio do direito é continuar a ser eternamente belo e puro.

O facto, mesmo o mais necessário, na aparência, mesmo o mais bem aceite pelos contemporâneos, só existe como facto, e se houver nele só uma parte de direito, ou absolutamente nenhuma, está destinado infalivelmente a tornar-se, com a passagem do tempo, disforme, imundo, talvez mesmo monstruoso. Se quisermos comprovar de uma só vez a que ponto de fealdade o facto pode chegar, visto à distância dos séculos, olhemos para Maquiavel. Maquiavel não é um génio malvado, nem um demónio, nem um escritor cobarde e miserável; é apenas o facto. E não é só o facto italiano, é o facto europeu, o facto do século XVI. Parece hediondo, e é-o, à luz da ideia moral do século XIX.

Esta luta do direito e do facto existe desde a origem das sociedades. Terminar o duelo, amalgamar a ideia pura com a realidade humana, introduzir pacificamente o direito no facto e o facto no direito tal é o trabalho dos sábios.

(…)

Mas um é trabalho dos sábios e o outro é o trabalho dos habilidosos.

A revolução de 1830 parou muito depressa.

Assim que uma revolução fica encalhada, os habilidosos dividem os despojos.

Os habilidosos, no nosso século, atribuíram a si mesmos a qualificação de homens de Estado; de tal modo, que a expressão “homem de Estado" acabou por se tornar um tanto uma expressão de calão. Que não nos esqueçamos realmente disto: onde só há habilidade, também há necessariamente pequenez. Dizer habilidosos equivale a dizer medíocres.

Do mesmo modo, dizer homens de Estado equivale, algumas vezes, a dizer traidores.

Se acreditarmos então nos habilidosos, as revoluções como a Revolução de Julho são artérias cortadas e precisam de ser logo laqueadas. O direito, proclamado em excesso, destabiliza. Por isso, quando já está consolidado, há que consolidar o Estado. Assegurada a liberdade, há que pensar no poder."

Os Miseráveis, Vítor Hugo


terça-feira, 29 de julho de 2025

Li a entrevista de Pedro Paixão e corri a comprar o seu "Desvio da Memória”. Não compro muitas coisas por impulso, mas compro muitas vezes livros por impulso. E gosto do autor.

Nas últimas semanas tenho lido (e relido) muitos livros sobre os horrores do Holocausto. Consome-me perceber a dimensão do ódio de que fomos capazes – e como se ultrapassa tão facilmente essa fronteira. O horror chega muitas vezes de olhos limpos. Kathrine Kressmann Taylor escreveu “Desconhecido Nesta Morada” assediada pela perplexidade que lhe causava perceber como alguns dos seus amigos “alemães, cultos, intelectuais, generosos"de regresso à Alemanha depois de terem vivido nos EUA, rapidamente se tornavam "nazis convictos": "Recusavam-se a ouvir a mínima crítica a Hitler. Durante uma visita à Califórnia, encontraram na rua um velho amigo deles, que em tempo estimavam, com quem tinham uma relação estreita, e que era judeu. Não lhe dirigiram a palavra. Voltaram-lhe as costas quando ele estendeu os braços para os abraçar. 'Como isto é possível?', perguntei a mim própria.”. É um livro extraordinário. Quase um livro. Curto. Uma “ficção epistolar”. Lê-se como um catecismo. O de Pedro Paixão é como uma bíblia, difícil, denso, labiríntico. Vou saltando páginas, volto atrás, recomeço. O calor ígneo que larva lá fora concede-me desculpas para não sair e declinar convites.

Livros e viagens: são a minha ruína. Mais cem anos viveria, e ainda assim sem tempo de me saciar. E para cada viagem devo preparar os livros que quero levar. “Desvio da Memória” será impossível. 

Também gosto de preparar as viagens de carro com um mapa de papel, que abro no chão da sala para poder pensar melhores caminhos. Isso é tão século passado, mamã. Não é? Eu sei, mas gosto assim. É-me impossível traçar um percurso sem essa visão global, quase física, do espaço. Depois usarei os mapas virtuais; em tempo real. Agora não. Conforta-me o toque; a ausência de um écran. Imagino que o Armageddon há-de chegar por uma ordem primária, um desses apagões informáticos, dramático, igualmente implacável, quarenta dias e quarenta noites de silêncio absoluto para remissão dos nossos pecados, mas sem a ajuda de Deus. Até ele já desistiu de nós.


"Não há fome em Gaza"

 

Forjar um mecanismo sofisticado de racionalização imparcial para moldar uma narrativa pretensamente informada, sob o véu enviesado da isenção, não constitui, também e sobretudo, uma forma dissimulada de propaganda?



domingo, 27 de julho de 2025

 



Fritz Eichmann, Environment&Me 2025 / EEA

 

Ballet Rose

Não há nenhum juízo capaz de me conciliar com a mundividência de Donald Trump – e seus apóstolos, como aquela matilha de indigentes que compõem a bancada do nosso, salvo seja, André Ventura. Acho-o grotesco, manhoso, tinhoso, ordinariamente ignorante e imbecil, predador e até patético; representa tudo o que desprezo, nomeadamente, num homem. Donald Trump, não só é o caricaturável por excelência, como merece todas as piadas que se possam fazer à sua custa; mas ridicularizar-lhe a genitália (esse enfadonhamente previsível arremesso de escárnio) não servirá grandes propósitos, nem mesmo os do humor.

Desprezar Donald Trump não me impede de admirar – pelo espanto, e apenas pelo espanto – a sua autoridade; a sua implacável e aparentemente inabalável eficácia política. A transgressão sistemática que cultiva e promove desbragadamente, eleva-o, fortalece-o. É perturbador. Espero viver o número de anos suficientes para vir a conhecer o olhar da História sobre o homem que se tornou democraticamente imune a todas as regras, a todas as leis que regem o poder democrático e pelas quais, muitos antes dele (e muitos depois dele) foram dilacerados. O caso Epstein é, talvez, o único que pode realmente fazer tremer essa autoridade. Donald Trump transformou a política numa performance onde a verdade se prostitui ao drama da espectacularidade e Epstein ameaça tornar-se a Némesis perfeita.

Os escândalos sexuais envolvendo a elite política e outras figuras públicas de poder não são novos e tendem a ser esmagados por esse mesmo poder, indiferente às vítimas que vai abatendo pelo caminho. O sexo é o último reduto onde todas as máscaras caem, esse tentador e obscuro bastidor do poder – do político, obviamente –, onde, desde todos os tempos, se desenrola uma extravagante coreografia de favores e corrupção, que não reconhece fronteiras ou hierarquias, onde a hipocrisia se despoja da sua eloquência e se expõe, frágil e movediça, à luz sólida e crua do escrutínio. Não é a economia, stupid, que derruba os grandes impérios. O sexo é a linguagem universal da corrupção, moeda de troca de babel, o denominador comum que nivela escravos e imperadores – ninguém é imune. O que talvez seja diferente aqui é o facto de haver – ou parecer haver – uma base considerável de apoiantes de Trump ferozmente contra a ocultação dos tais ficheiros da vergonha e cada vez mais consciente das suas desesperadas manobras de distração. Simultaneamente, não deixa de ser irónico, o mentiroso rudimentar, que nunca se inibiu de exibir a sua misoginia primária, assombrado pela verdade mais antiga do mundo.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

 

A propósito de "O Impostor", de Javier Cercas, que acabei de ler. A fabulosa – e infame – história de Enric Marco, o falso sobrevivente de um campo de concentração nazi, que durante trinta anos viveu e fez viver a mais formidável farsa do século. Várias vezes, Javier Cercas escreve que não (?) pretendia perdoar ou reabilitar Enric Marco pela sua odiosa audácia, mas, como acontece quase sempre com os bons livros e os bons escritores, os seus leitores acabam enamorados dos patifes. Ou talvez seja só eu. Enric Marco foi um admirável patife. Tão admirável que não é nada absurdo pensar que o seu último golpe de génio tenha sido esse, precisamente, o de deixar Cercas dissecar reverentemente, crua mas reverentemente, a sua assombrosa mentira. No fim, já ninguém recorda a integridade de Benito Bermejo, o rigoroso historiador que desmascarou Marco: quem quer saber do sabor morno da verdade, depois de se perder pela labiríntica e espantosa teia de ilusões que Marco cerziu pacientemente, com a maestria dos melhores contadores de histórias, fundindo a mediocridade de uma existência comum com o fulgor trágico das lendas que sobrevivem ao tempo? A questão não é saber quem nunca quis (re)inventar-se, mas quantos ousam, até onde e quanto desse atrevimento é verdadeiramente genial.




quarta-feira, 23 de julho de 2025

 



“43 – Los Caprichos", Goya

The Metropolitan Museum of Art 


domingo, 13 de julho de 2025


"Houve uma altura

em que só a certeza me dava

alguma alegria. Imaginem –

a certeza, uma coisa morta."

Louise Glück, As Sete Idades