quinta-feira, 7 de agosto de 2025

"O direito é o justo e o verdadeiro.

O que é próprio do direito é continuar a ser eternamente belo e puro.

O facto, mesmo o mais necessário, na aparência, mesmo o mais bem aceite pelos contemporâneos, só existe como facto, e se houver nele só uma parte de direito, ou absolutamente nenhuma, está destinado infalivelmente a tornar-se, com a passagem do tempo, disforme, imundo, talvez mesmo monstruoso. Se quisermos comprovar de uma só vez a que ponto de fealdade o facto pode chegar, visto à distância dos séculos, olhemos para Maquiavel. Maquiavel não é um génio malvado, nem um demónio, nem um escritor cobarde e miserável; é apenas o facto. E não é só o facto italiano, é o facto europeu, o facto do século XVI. Parece hediondo, e é-o, à luz da ideia moral do século XIX.

Esta luta do direito e do facto existe desde a origem das sociedades. Terminar o duelo, amalgamar a ideia pura com a realidade humana, introduzir pacificamente o direito no facto e o facto no direito tal é o trabalho dos sábios.

(…)

Mas um é trabalho dos sábios e o outro é o trabalho dos habilidosos.

A revolução de 1830 parou muito depressa.

Assim que uma revolução fica encalhada, os habilidosos dividem os despojos.

Os habilidosos, no nosso século, atribuíram a si mesmos a qualificação de homens de Estado; de tal modo, que a expressão “homem de Estado" acabou por se tornar um tanto uma expressão de calão. Que não nos esqueçamos realmente disto: onde só há habilidade, também há necessariamente pequenez. Dizer habilidosos equivale a dizer medíocres.

Do mesmo modo, dizer homens de Estado equivale, algumas vezes, a dizer traidores.

Se acreditarmos então nos habilidosos, as revoluções como a Revolução de Julho são artérias cortadas e precisam de ser logo laqueadas. O direito, proclamado em excesso, destabiliza. Por isso, quando já está consolidado, há que consolidar o Estado. Assegurada a liberdade, há que pensar no poder."

Os Miseráveis, Vítor Hugo