terça-feira, 27 de outubro de 2020
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
Entre (boas) memórias
Há um casal
magnífico, com a filha, imagino, os dois vestidos de cores vibrantes como o
compasso soprado das ondas. Ele leva um turbante exuberante, em tons de lilás e
vermelho, o mesmo vermelho que ela exibe nas tranças que lhe caem pelas costas
onde a bebé repousa num marsúpio verde, matizado, em contraste com o vestido
branco, amoroso, de mangas curtas, de folhos. Ela de corpete preto, de renda, e
saia comprida, azul do mar que admira, manchada de rosas a meia perna e um
debrum laranja, a remate, radiante como um pôr-do-sol. Ele veste uma túnica
igualmente negra e umas calças de estilo tribal, largas, de amplas cornucópias
douradas sobre um fundo violeta-escuro. O sol aquece com ardor, e ela abre uma
sombrinha, de rebordo picotado, espalhando a usual estampa colorida de
elefantes da Índia, enquanto ele se apressa a ajudar, tomando-lha das mãos para
abrigar a menina da inclemência do meio-dia. Param por um breve instante, para
logo seguir caminho, os três, um caleidoscópio assimétrico, igualmente belo,
dando cor e forma à melodia que o mar não se cansa de tocar.
Era um outro tempo,
não muito distante, em que as crianças não tinham receio de se deitar no chão, de
se sujar e brincar, as mãos e a cara coladas no mármore para espreitar,
pasmadas, a magia daquele capricho de engenharia, conduzindo notas que nunca se
cansam, pautas que nunca se esgotam.
A minha amiga
fotografou-os. Ao belo casal com a sua bebé. Eu não fui capaz. Com medo de
quebrar encanto.
Entre conversas comigo mesma
Enquanto
nos entretemos entre provocações obtusas que não servem para nada a não ser
para aborrecer, ou entreter alguns, o mundo vai definhando à nossa volta.
Quando, finalmente, levantarmos os olhos dos insta-não-sei-quê em que
inventamos a vida que gostaríamos de ter, bajulamos os que têm (ou talvez não)
a vida glamorosa que nos servem em bandejas de luxo e de lixo – seja nas fotos
falsificadas a troco de uns dinheiros atirados aos falsificadores de serviço,
seja vendendo os filhos a retalho desde o momento da concepção (lembras-te
daquele colégio em que gostaste tanto de andar, ouvi uma
influencer-barra-mãe-barra-viceversa-barra-tantofaz dizer, um dia qualquer, num
telejornal) – quando emergirmos do nós podemos ser maus, mas vocês são
bem piores, quando, finalmente, quisermos deixar de rosnar uns contra os
outros e quisermos fazermos um esforço para colar o que sobra, não terá sobrado
nada. Não deixámos que sobrasse. A liberdade devorou-nos sem
darmos por isso, porque decidimos que a liberdade está ao nível da ignomínia.
Pusemos a ciência ao nível da vigarice, exigindo provas suadas e herméticas à
primeira e boa lábia redesocialgénica à segunda; consentimos
na presunção de comparar a opinião ao insulto, a apologia do ódio à
manifestação de um simples diferendo de vozes igualmente atendíveis, até
chegarmos ao absurdo de vermos gente aparentemente decente hipotecar a decência
a formalismos da treta, desde que isso permita manter – ou fingir – um certo
distanciamento da histeria das massas. Se há uma multidão de gente a dizer que
é horrendo, vamos dizer que não é nada, não vão os outros pensar que não temos
cabeça, ou, pior, que como repudiámos este crime e não repudiámos aquele, seja
qual for um e outro, somos uns incoerentes histéricos, no mínimo, e, portanto,
o melhor é não repudiar nenhum; deixemos as coisas seguirem o seu rumo sem nos
comprometermos com causa nenhuma, para não sermos acusados de não nos
comprometermos com todas.
sábado, 24 de outubro de 2020
As faces do Universo
Photograph: Domcar C Lagto/ Pacific Press/ Zuma/ Rex/Shutterstock
“O estudo das galáxias revela uma ordem e uma beleza universais.
Também nos mostra violência caótica numa escala nunca imaginada até agora. Que
vivamos num Universo que permite a vida é notável. Que vivamos num que destrói
galáxias e estrelas e mundos, também é notável. O Universo não parece ser nem
benevolente nem hostil, apenas indiferente às preocupações de insignificantes
criaturas como nós.”
Carl Sagan, Cosmos
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
De outros Outubros e outros Outonos
A casa começa a
aquecer-se em Outubro. Com lenha trazida do coração das fazendas que ainda
resistem ao amanho laborioso da terra, à mercê das mãos quase despidas, à força
dos braços velhos, teimosos, que escapam do tempo e se entregam à vontade dos
dias que sobram.
É imprescindível que
se comece em Outubro. A casa é grande, talhada de pedra, de suor, de risos e
lágrimas, assente em memórias dos despojos de outros tempos, de outras vidas,
em tábuas e aços de caminhos-de-ferro perdidos, desconhecidos da gente nova e
miúda, não fossem as histórias aquecidas à lareira, em molduras de mármores
maciços de igrejas velhas, escassas no divino e devido culto. Começa-se em
Outubro, porque, até no Verão, o fresco do santuário pode ser inquieto e rude
sem o aconchego de um xaile sobre as costas vergadas.
Em dias de maior
labuta, há que dar lume também ao forno de lenha da serventia, lá fora, onde o
vento rodopia embalado pelas folhas secas, em frufrus suaves como num vestido
de gala. Cozem-se broas de milho recheadas de farrapos de bacalhau demolhado ou
tiras finas de presunto pouco seco, consoante a ordem e a dimensão do pecado.
O forno range e estala reclamando a massa generosa, benzida numa cruz para remissão de males em que já ninguém acredita, mas ninguém quer renegar. Quando as entranhas devolverem o pão quente e estaladiço, o milho amarelo e guloso cozido entre silvos caprichosos e aromas hereges, será tempo de saciar a alma até ao Outubro seguinte.
Sobre Debates
Lá houve debate.
Entre os dois candidatos ao cargo de Presidente dos EUA, quero dizer. Muito menos caótico
do que o primeiro, o que não era muito difícil. Ou, se calhar, até era; nunca
se sabe bem o que vai na cabeça bem (nem por isso) penteada e laqueada (de laca, sem outra maldade) do bulldozer narcísico, irado e
vingativo que ocupa a Casa Branca, actualmente. Mas, enfim, conseguiu-se qualquer
coisa de decente. O suficiente para os que precisavam de uma pequenina desculpa
para não terem vergonha de dizer vêem?, o homem não é tão mau como o pintam
poderem dizer vêem?, o homem não é tão mau como o pintam. Tal como aconteceu em 2016. Já os que são
exactamente como ele, não precisam de desculpas. Nem de debates.
De resto, Trump foi Trump. Com ele é tudo beautiful people, great guys, sucesso tremendo e billions and billions de lucro, e com Biden é tudo ugly, terrible people, corrupção do piorio, negócios por esclarecer e billions and billions de prejuízo. Enfim, um homem cheio de si próprio, para não dizer uma asneira.
De qualquer forma, olha-se para aquilo e é como enfiar um punhado de areia na boca. A sério que os Democratas não conseguiram mesmo um candidato melhor para enfrentar a Besta?
Ah, e também houve Abraham Lincoln. E Donald Trump é a pessoa menos racista,
já não me lembro se do mundo, se do planeta. Não interessa nada, como tudo o
que escrevi até agora. Quem quiser conclusões, veja o debate e tire as suas. Eu
nem sou americana e, por cá, já temos problemas que chegue. E debates, também.
E, precisamente, por falar em debates. Depois do susto – ou do boato –, José Gomes Ferreira lá regressou ao “Negócios da Semana” com um tema que devia dar mais debates, mais programas de televisão e mais artigos de jornal: a corrupção. A estratégia de combate à corrupção. Tanta gente assustada com a possibilidade de haver uma tentativa de afastar outra voz incómoda para o regime e nem uma vírgula sobre o que ali se disse. Que eu tenha visto, pelo menos, mas tenho visto pouco, por estes dias. Ainda assim, com a bazuca pronta a disparar – e depois do momento corneto (dois para ti, três para mim e a vida sorri para alguns, os do costume) que foi a eleição para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional –esperava uma comoção nacional generalizada. Mas não aconteceu nada que causasse espanto. Afinal, Portugal não é nada um país corrupto. Quem o afirma são só os populistas como a Ana Gomes. Os populistas como o André Ventura têm desculpa porque são anti-sistema.
E mais coisas, mas, de momento, não tenho tempo.
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Ciência, mas não só.
Ontem, ouvi parte da conversa entre Carlos Fiolhais e Vasco Trigo e Ann Druyan. Ia ouvir uma conversa sobre ciência e acabei (também) por ouvir histórias de amor. Muitas histórias de amor. Sem espanto, na verdade. Uma e outro (con)fundem-se várias vezes e de várias formas. É uma outra Química, e uma outra Física, em estado puro. Um desassossego em ebulição. E o "Cosmos" continua a ser uma Bíblia para alguns de nós.
Somewhere,
something incredible is waiting to be known.
For small
creatures such as we the vastness is bearable only through love.
Carl Sagan
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Sermões e Provocações
Há, em alguma gente, uma ousadia quase profana que me delicia. Uma
provocação ostensiva e intencional, arrogante e sagaz, longe, muito longe, da
imbecilidade boçal e medíocre da matilha bolsonarista e trumpista, que é a
expressão maior da liberdade e que, por momentos, me faz sentir, até, uma certa
inveja. Por não capaz de
tamanha audácia.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Não sei conjugar palavras e imagens com a elegância e harmonia que merecem ambas. Quando me atrevo a tentar, na maioria das vezes o mais que consigo é um embaraço. Quase sempre desnecessário entre dois maravilhosos mundos que, pela minha vontade, poucas vezes se encontram. Quanto mais belo for um, menos reclamo o outro.
As fotografias são daqui. Ou daqui, para ver as de outros anos.