sexta-feira, 23 de outubro de 2020

De outros Outubros e outros Outonos

 

A casa começa a aquecer-se em Outubro. Com lenha trazida do coração das fazendas que ainda resistem ao amanho laborioso da terra, à mercê das mãos quase despidas, à força dos braços velhos, teimosos, que escapam do tempo e se entregam à vontade dos dias que sobram.

É imprescindível que se comece em Outubro. A casa é grande, talhada de pedra, de suor, de risos e lágrimas, assente em memórias dos despojos de outros tempos, de outras vidas, em tábuas e aços de caminhos-de-ferro perdidos, desconhecidos da gente nova e miúda, não fossem as histórias aquecidas à lareira, em molduras de mármores maciços de igrejas velhas, escassas no divino e devido culto. Começa-se em Outubro, porque, até no Verão, o fresco do santuário pode ser inquieto e rude sem o aconchego de um xaile sobre as costas vergadas.

Em dias de maior labuta, há que dar lume também ao forno de lenha da serventia, lá fora, onde o vento rodopia embalado pelas folhas secas, em frufrus suaves como num vestido de gala. Cozem-se broas de milho recheadas de farrapos de bacalhau demolhado ou tiras finas de presunto pouco seco, consoante a ordem e a dimensão do pecado.

O forno range e estala reclamando a massa generosa, benzida numa cruz para remissão de males em que já ninguém acredita, mas ninguém quer renegar. Quando as entranhas devolverem o pão quente e estaladiço, o milho amarelo e guloso cozido entre silvos caprichosos e aromas hereges, será tempo de saciar a alma até ao Outubro seguinte.