A casa começa a
aquecer-se em Outubro. Com lenha trazida do coração das fazendas que ainda
resistem ao amanho laborioso da terra, à mercê das mãos quase despidas, à força
dos braços velhos, teimosos, que escapam do tempo e se entregam à vontade dos
dias que sobram.
É imprescindível que
se comece em Outubro. A casa é grande, talhada de pedra, de suor, de risos e
lágrimas, assente em memórias dos despojos de outros tempos, de outras vidas,
em tábuas e aços de caminhos-de-ferro perdidos, desconhecidos da gente nova e
miúda, não fossem as histórias aquecidas à lareira, em molduras de mármores
maciços de igrejas velhas, escassas no divino e devido culto. Começa-se em
Outubro, porque, até no Verão, o fresco do santuário pode ser inquieto e rude
sem o aconchego de um xaile sobre as costas vergadas.
Em dias de maior
labuta, há que dar lume também ao forno de lenha da serventia, lá fora, onde o
vento rodopia embalado pelas folhas secas, em frufrus suaves como num vestido
de gala. Cozem-se broas de milho recheadas de farrapos de bacalhau demolhado ou
tiras finas de presunto pouco seco, consoante a ordem e a dimensão do pecado.
O forno range e estala reclamando a massa generosa, benzida numa cruz para remissão de males em que já ninguém acredita, mas ninguém quer renegar. Quando as entranhas devolverem o pão quente e estaladiço, o milho amarelo e guloso cozido entre silvos caprichosos e aromas hereges, será tempo de saciar a alma até ao Outubro seguinte.