sábado, 3 de outubro de 2020

Marta Pereira da Costa

 


Ainda o Quino e a sua Mafalda

 


Hoje li uma simpática homenagem ao criador da Mafalda. Entre outras coisas, um leitor do PÚBLICO dizia que alguns dos livros da Mafalda de Joaquim Salvador Lavado Tejón deveriam fazer parte do Plano Nacional de Leitura, e a sugestão pareceu-me muito pouco absurda.

Não sei bem quando é que me cruzei com a Mafalda. Quando dei por ela, já andava a copiar as minhas tiras preferidas (desenho pessimamente, mas copio desenhos alheios, alguns desenhos alheios, com alguma competência; mínima, jamais poderia tornar-me uma perigosíssima falsificadora, infelizmente, porque, se fosse o caso, pelo menos podia copiar-me as obras de que mais gosto e não tenho como adquirir legitimamente…bolas!), a colori-las, a plastificá-las e a usá-las como marcadores de livros. Não saberia explicar o ritual, ainda que tal coisa fosse necessária, e não é. Excepto que sempre fui uma leitora compulsiva, continuo a gostar de marcadores de livros e aquele tempo que passava a copiar os desenhos de Quino, a rir-me com a Mafalda e os amigos, entre críticas corrosivas e manifestos sociais e políticos, suspensa de mim mesma e do mundo dela, eram uma espécie de terapia em alguns dias demasiados compridos, principalmente no Verão de que me cansava rapidamente. Actualmente vivemos em saudável e cordial harmonia, eu e o Verão, mas não foi sempre assim e, além disso, gosto muito das mudanças de estação; embora essas mudanças se diluam já bastante entre os caprichos do tempo que também moldamos, trazem-me sempre uma vontade renovada, um hálito fresco que me alimenta.

Há sempre gente que vive muito para além do tempo que por cá passa. Muitos deles, felizmente, pelos melhores motivos. Será o caso de Quino, para muitos de nós. Já a Mafalda habita, ainda, em cada acto de rebeldia, em cada dedo em riste apontado a todos os atropelos com que esbarramos pelo caminho, e assim permanecerá por mais anos; eventualmente, contra a vontade do seu criador que esperaria poder chegar a ver um mundo melhor. Muito melhor. Um mundo em que os canalhas continuassem confinados às suas tocas porque um mínimo de decência generalizada os impediria de zurrar, menos ainda, em horário nobre e, principalmente, ver-se-iam incapacitados de adulterar, descaradamente, as regras democráticas, subjugando-as à sua vilania, assessorados por uma turba de maníacos sem escrúpulos, que já nem precisam de fingir uma gota que seja de decoro moral, uma qualquer sombra de lisura.

A Mafalda está mais viva do que nunca. E, sim, isso é desolador. Mas, enquanto não a perdermos, sobra qualquer coisa de esperança.

Liberdade

 A minha liberdade, a convite da MJP. Um beijo para ti.





Ao iniciar este texto, lembrei-me de que já tinha escrito outros textos em que falava de liberdade. Liberdade de expressão, por exemplo, que se confunde, tantas vezes, com a possibilidade de exprimir tudo e mais alguma coisa – verdade ou mentira, facto ou ficção, opinião ou crença, crítica ou insulto – pelo (não tão simples) facto de se viver num país livre. Parece a mesma coisa, mas não é bem. Digo eu, que nem sei se sei definir Liberdade. Partindo do princípio de que haja tal definição, e não apenas estados de liberdade, momentos em que podemos assegurar que, por um instante que fosse, fomos extraordinariamente livres. Vi gente ser livre com tão pouco, e vi gente cheia de tudo e de nadas aprisionada uma vida inteira.

Já vivi num país menos livre do que Portugal. Aí, nesse outro país que ainda não deixei de amar, ser livre podia ser apenas (nunca é “apenas”) sair à rua de mini-saia, coisa que deixei cair ao segundo ou terceiro dia; ao contrário de uma grande amiga, que nunca esmoreceu na audácia de as vestir.

Não sei se por isso, o meu, e só meu, conceito de liberdade foi-se adensando com o passar dos anos, não tendo, porém, mudado dramaticamente com a pandemia e o confinamento que nos amordaçaram os últimos dias; os últimos meses. Mas, talvez me tenha dado conta de que muitos de nós não éramos tão livres quanto supúnhamos; e outros não eram tão livres quanto gostariam. Eventualmente, alguns ter-se-ão dado conta de que, afinal, não gostavam assim tanto da liberdade de que se sentiam donos. Não será sempre assim? Ser livre arrasta consigo a responsabilidade tremenda de assumir as consequências dessa liberdade que se quer agarrar com teimosia e zelo. Nesse sentido, ser livre pode ser também – e é! – um acto de provocação. Como a mini-saia da minha amiga, mas não só.

Há liberdades fáceis de definir nos pergaminhos da Lei. Umas mais fáceis de definir que outras, é certo, mas a Liberdade? Talvez só a de Cícero, a do pensamento. Ou a de Aristóteles, um homem livre é senhor da sua vontade e somente escravo da sua própria consciência, e naquele somente, talvez, caiba tudo o que é preciso para sermos verdadeiramente livres.

E há os que julgam ser livres, e nunca alguém será livre enquanto existirem os flagelos, como sentenciou Camus, na sua peste de 1947, um esquisso dos dias de hoje, medonhos, um acto de adivinhação de que só os mais livres são capazes. Acho que a Liberdade é sobretudo isso. Não nos trairmos, não abdicarmos de nós. Não abdicar de mim. Desses instantes que me mantêm inteira. Não adulterar nenhuma parte importante de nós; eleger armas e batalhas sem desobedecer a quem somos; escolher os silêncios ou a palavras, o sol ou a chuva, querer e não querer sem mandamentos impostos contra a nossa vontade, essa vontade de que nos fazemos, passo-a-passo, e que, por isso, não é volúvel, mesmo que possa durar um instante: um pôr-do-sol em chamas, um abismo, um engano, um pecado consentido, sem sentido, uma manhã de chuva, como esta, em que te escrevo, querida MJP, embalada pelo restolhar dos pingos, grossos, que se estilhaçam, lá fora, no asfalto enegrecido da rua. Nas cidades não cheira a terra, mas tenho a liberdade de o imaginar, e, imaginando-o, de o sentir. O cheiro a terra molhada. E agradeço-te a liberdade, e o carinho, de me teres convidado a invadir o teu espaço. Obrigada. 

Obrigada também aos que, passando por cá, tomam a liberdade de emprestarem, à minha, parte do seu precioso tempo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Um convite especial

da querida MJP levou-me ali, ao "Liberdade aos 42"

Não sei se sei o que é a Liberdade, mas descobri que, mesmo virtualmente, há gente capaz de ver o melhor de nós, mesmo que esse melhor não seja grande coisa.

Deixo-te esta fotografia, MJP. Do Porto que há-de sempre meu; lindo, mesmo de cinzento vestido. Porque partilhamos, pelo menos, uma paixão: a fotografia.

Um beijo grande e obrigada.



Os rapazes do presidente

Pobre Trump. Convertido em bode expiatório da esquerda radical, um homem daqueles, poderosíssimo, corajoso, o melhor presidente que a América já teve (tenho lido textos comoventes...), a quem Biden insultou chamando palhaço (e eu não gostei nada) e, assim, desonrando o cargo maior do estado a que se chegou. Do que a América precisa é de um homem capaz de atiçar os cães, apelar à revolta armada, stand back and stand by, menos mal que estas coisas nunca são para levar a sério, é só da boca para fora, no fundo no fundo, são tudo bons rapazes, além de orgulhosos. 

Dia 3 de Novembro, seja qual for a ameaça de resultado das eleições presidenciais, a América emergirá imensa, enorme, à imagem e semelhança do seu criador e de todos os que lhe prestam vassalagem. É bom começarmos a apertar os cintos e a prepararmo-nos para o embate.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Quino

 





Equilíbrios

 


Nazaré, fotografia de Aidan Williams, National Geographic


O tal debate


Creio que nunca terei ficado acordada com o único propósito de ver ao vivo, mais ou menos, um debate entre candidatos às eleições americanas. Mas, os tempos são outros e tenho a imensa sorte de dormir muitíssimo bem e, se for caso disso (muito raramente é), retomar facilmente o sono a meio da noite. Pois bem, ontem era o caso. Tinha uma grande expectativa sobre o confronto entre Donald Trump e Joe Biden, o que prova que devo estar a ficar senil.

Partilho das opiniões generalizadas, de que o debate foi miserável. Na verdade, para lá de miserável. Achei péssima a prestação de Chris Wallace, não gostei de ouvir Biden chamar palhaço a Trump – não é que a criatura não seja bem pior que isso e talvez até nem tenha sido um deslize – e surpreende-me sempre a deferência que existe com os descaradamente mentirosos poderosos, a quem nunca se exige, com a mesma assertividade implacável que se reserva aos outros, que provem o que estão a dizer, que documentem, que expliquem. Claro que isso também é difícil, quando se tenta estabelecer o mínimo de conversa com alguém com o perfil do actual presidente dos EUA. Aliás, se nos abstrairmos disso, Trump é, realmente, uma personalidade fascinante do ponto de vista médico – da área da psiquiatria. O nosso protótipo nacional só não se lhe assemelha porque, precisamente, é-lhe mais difícil fingir que é tão ignóbil quanto pretende parecer. Já Trump é o que é, é-lhe indiferente, e lida lindamente com todos os atropelos à verdade dos factos porque criou a sua própria realidade virtual, que os seus apoiantes mais fiéis trazem em ombros sobre as ruínas do que vão esmagando pelo caminho. Só lhe falta mesmo o shoot somebody no meio da 5ª Avenida e safar-se com isso, who cares?

Claro que Trump não foi capaz de assegurar que vai aceitar os resultados das eleições se perder  não vai – nem de condenar os grupos de supremacistas brancos pelos actos de violência; usou o habitual tom jocoso (estou tão preparado, quem é que quer que eu condene) para, imediatamente a seguir, lançar achas para a fogueira que o há-de manter vivo até 3 de Novembro, pelo menos: “Proud Boys, stand back and stand by. But I'll tell you what: Somebody's got to do something about antifa and the left. Because this is not a right-wing problem — this is a left-wing problem”, e os Proud Boys, very proud, já vieram responder, heil trump, quantas cabeças partidas quer? 

É importante semear o caos para, depois, impor a lei e a ordem. 

 


Não vai acabar bem. Não vai acabar nada bem. E é penoso ver o estado a que chegou a América. Mais do que miserável.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Make Trump Great Again




Que bom! Como todos os outros presidentes americanos foram uns crápulas, no mínimo, incompetentes à sua maneira, Trump, pelo menos, tem feito algumas coisas boas nos EUA e pelos EUA. E, como o que se passa na América não interessa nada a Portugal, a não que um senhor embaixador nos venha dizer a que país nos devemos vender a retalho, e artistas na arte de escapar aos impostos também os temos por cá em tamanho XS, está tudo muitíssimo bem. O que é o homem representa assim de tão fastidioso? Isto da inveja e do ódio, realmente...


Estranhezas

 


Choveu, e há um cheiro intenso a terra fértil e a musgo verde. Coada pelos ramos altos e quase despidos das árvores, a luz morna da manhã estica-se, apressada, sobre o chão húmido, exaltando as cores de Outono em pulsos desordenados, como o bater de um coração antecipando a tempestade.

No tronco da árvore maior, não muito acima do solo, há uma cavidade aberta, semi-oculta, inundada a diferentes tempos pela luz que lá chega ao sabor do andamento das nuvens carregadas ainda. Mesmo aí, à entrada, uma pequena aranha de ventre ovalado e negro encontrou algum abrigo enquanto tece a sua teia de seda, ardilosa, uma artesã paciente e escrupulosa numa azáfama encantada, movendo as patas muito finas, um maestro guiando uma orquestra a movimentos precisos, subindo e descendo, soltando melodias silenciosas magistralmente materializadas numa renda delicada e enganadoramente frágil, um leito fatal aguardando a primeira presa.

Suspenso na parte já esculpida da teia, há um fio fino de gotinhas cristalinas de água harmoniosamente alinhadas como as contas de um colar.

Tenho tempo. Fico a vê-la montar o seu ardil. Paciente como ela.