A minha liberdade, a convite da MJP. Um beijo para ti.
Ao iniciar este
texto, lembrei-me de que já tinha escrito outros textos em que falava de liberdade.
Liberdade de expressão, por exemplo, que se confunde, tantas vezes, com a
possibilidade de exprimir tudo e mais alguma coisa – verdade ou mentira, facto
ou ficção, opinião ou crença, crítica ou insulto – pelo (não tão simples) facto
de se viver num país livre. Parece a mesma coisa, mas não é bem. Digo eu, que nem
sei se sei definir Liberdade. Partindo do princípio de que haja tal
definição, e não apenas estados de liberdade, momentos em que
podemos assegurar que, por um instante que fosse, fomos extraordinariamente
livres. Vi gente ser livre com tão pouco, e vi gente cheia de tudo e de nadas
aprisionada uma vida inteira.
Já vivi num país menos livre do que Portugal. Aí, nesse outro país que ainda não deixei de amar, ser livre podia ser apenas (nunca é “apenas”) sair à rua de mini-saia, coisa que deixei cair ao segundo ou terceiro dia; ao contrário de uma grande amiga, que nunca esmoreceu na audácia de as vestir.
Não sei se por isso,
o meu, e só meu, conceito de liberdade foi-se adensando com o passar dos anos,
não tendo, porém, mudado dramaticamente com a pandemia e o confinamento que nos
amordaçaram os últimos dias; os últimos meses. Mas, talvez me tenha dado conta
de que muitos de nós não éramos tão livres quanto supúnhamos;
e outros não eram tão livres quanto gostariam. Eventualmente, alguns ter-se-ão
dado conta de que, afinal, não gostavam assim tanto da liberdade de que se
sentiam donos. Não será sempre assim? Ser livre arrasta consigo a
responsabilidade tremenda de assumir as consequências dessa liberdade que se
quer agarrar com teimosia e zelo. Nesse sentido, ser livre pode ser também – e
é! – um acto de provocação. Como a mini-saia da minha amiga, mas não só.
Há liberdades fáceis de definir nos pergaminhos da Lei. Umas mais fáceis de definir que outras, é certo, mas a Liberdade? Talvez só a de Cícero, a do pensamento. Ou a de Aristóteles, um homem livre é senhor da sua vontade e somente escravo da sua própria consciência, e naquele somente, talvez, caiba tudo o que é preciso para sermos verdadeiramente livres.
E há os que
julgam ser livres, e nunca alguém será livre enquanto existirem os
flagelos, como sentenciou Camus, na sua peste de 1947, um esquisso dos dias
de hoje, medonhos, um acto de adivinhação de que só os mais livres são capazes.
Acho que a Liberdade é sobretudo isso. Não nos trairmos, não abdicarmos de nós.
Não abdicar de mim. Desses instantes que me mantêm inteira. Não adulterar nenhuma
parte importante de nós; eleger armas e batalhas sem desobedecer a quem somos;
escolher os silêncios ou a palavras, o sol ou a chuva, querer e não querer sem
mandamentos impostos contra a nossa vontade, essa vontade de que nos fazemos,
passo-a-passo, e que, por isso, não é volúvel, mesmo que possa durar um
instante: um pôr-do-sol em chamas, um abismo, um engano, um pecado consentido,
sem sentido, uma manhã de chuva, como esta, em que te escrevo, querida MJP,
embalada pelo restolhar dos pingos, grossos, que se estilhaçam, lá fora, no
asfalto enegrecido da rua. Nas cidades não cheira a terra, mas tenho a
liberdade de o imaginar, e, imaginando-o, de o sentir. O cheiro a terra molhada.
E agradeço-te a liberdade, e o carinho, de me teres convidado a invadir o
teu espaço. Obrigada.
Obrigada também aos que, passando por cá, tomam a liberdade de emprestarem, à minha, parte do seu precioso tempo.