domingo, 15 de novembro de 2020
domingo, 8 de novembro de 2020
Destes dias
Não conheço ninguém
que viva num lar. Mesmo que seja possível, isso de viver num lar. Dizem que há lares que são mesmo Lares. Espero nunca vir a precisar, nem para mim própria, nem para os meus mais queridos. Até à presente data, os meus
dois únicos familiares com necessidade de acompanhamento permanente numa
determinada fase da sua vida tiveram a possibilidade, afortunada, de ficar em
casa até ao fim da agonia. Na impossibilidade de afastar as doenças, terríveis as duas, o segundo privilégio foi a agonia não se ter prolongado por
tempo demasiado indecente. Há um tempo minimamente decente para aguentar uma espécie de coisa
que já não é vida. Para quem resiste e para quem assiste, impotente, mesmo que faça todo o possível para fazer muito mais. E quem passa pelo horror da experiência, passa por ela de
forma diferente, pelo que não há muito mais a dizer. A não ser que não tenho medo de
envelhecer. Creio que nem sequer tenho um medo estapafúrdio da morte. Tenho
pena de deixar de viver, e tenho medo de deixar de viver muito antes da morte
chegar. Comungo da ideia de que a morte não chega exactamente com o último
sopro.
Entre os mais desprotegidos dos mais desprotegidos, continuam os mais velhos, os mais doentes e os mais pobres. Prepara-se outra etapa de combate à pandemia que, temo, ameaça tornar-se num outro remendo. Mas nada disto é fácil. Inevitavelmente, com o SNS à beira do colapso, o Governo decretou o recolhimento obrigatório em alguns dos concelhos com maior número de infectados. Parece que andamos a portar-nos muito mal. Talvez seja, não sei. Sei que andamos a usar as máscaras mal desde o início. Já não sei se isso chega para explicar tudo. Tenho tido – como todos – muita dificuldade em equilibrar o deve e o haver (se posso dizer assim) da nossa gestão desta pandemia que o final de ano não vai levar, afinal. Nossa, enquanto país, nossa, individualmente. Nesta fase, imagino, serão poucos os que ainda não conhecem alguém doente. No mínimo. Talvez sejam mais os que ainda não perderam ninguém para a doença. Para outras doenças, atiradas para um canto por esta. Cada um de nós terá tido a sua dose. Mais uma vez, pessoal e intransmissível. Acresce que também não vejo os meus pais há muito mais tempo do que queria – do que quereríamos e do que nos devemos – e debato-me entre a vontade de os abraçar e o medo de poder contaminá-los. Fala-se muito sobre a liberdade que os nossos pais e avós devem ter, impreterivelmente, de decidir se querem ou não abdicar dos seus afectos em favor de um imperativo maior que é viver sanitariamente o tempo que têm pela frente. Eu concordo com isso, mas só em parte. Ou melhor: não é tanto uma questão de concordar ou não concordar, é o que fazer com a culpa que fica depois, caso haja esse depois que ninguém deseja; que eu, pessoalmente, não quero sequer equacionar. Será egoísmo meu.
O celebrado milagre
português – que, afinal, não foi bem – foi forjado sobre os ombros dos
profissionais de saúde dedicados e com enorme espírito de sacrifício; parece-me
bastante certo. Além, claro, da nossa vontade de ficar em casa; motivada pelo
medo, sim. Maioritariamente, talvez. Do mesmo modo que, agora, por exemplo, muitas escolas
se têm aguentado à custa da dedicação e espírito de sacrifício de professores e
funcionários. Claro que não de todos, evidentemente, não há nenhuma classe
profissional livre da sua nodoazinha de marca. Mas dos suficientes para o caos
não ser maior ainda. Há funcionários a reduzir, por iniciativa própria, as suas
pausas para almoço, para conseguirem (outro exemplo) limpar todas as salas entre
horários de manhã e tarde, quando rodam as turmas. E professores a duplicar parte
das tarefas, porque, aparentemente, em alguns concelhos toda a turma fica em
casa quando há um ou mais alunos infectados e, noutros concelhos, só ficam em
casa os alunos infectados: a restante turma continua com aulas presenciais e
não há dois professores diferentes para o efeito. Entretanto, o Governo
continua a falar nos computadores que chegam aos alunos mais carenciados, e há
escolas aonde não chegaram, ainda, nem computadores nem professores. Evidentemente,
um sistema de colocação de professores obsoleto e apodrecido pesa nas contas cada
vez mais inconciliáveis.
E, sim, nos últimos dias andei obcecada com as eleições americanas. É-me indiferente (talvez "quase indiferente" seja mais honesto) o rumo da política na América, assunto sobre o qual percebo pouco mais que nada. Para mim, a questão não era essa. Há maldade e maldade, escuridão e escuridão, trevas para além das linhas que nos arrancam pedaços, ou da sombra negra das nuvens antes da tempestade perfeita. Donald Trump é maldade na sua forma nauseabunda. Ventura é um menino de fralda. É esse o grande legado de Trump. Não só por cá. Veremos por quanto tempo. Fico aliviada com a vitória de Biden (mesmo que Trump e a sua corja esperneiem e possam, ainda, ressuscitar), não porque Biden seja uma competentíssima promessa, mas porque tenho mais facilidade em explicá-lo a ele à criança que pus no mundo e que vou tantando educar. Não tem nada a ver com ser boazinha. Também já fui capaz de o ensinar a não bater em ninguém por sua iniciativa, aconselhando-o, contudo, a que se alguém lhe batesse primeiro, que pensasse duas vezes entre ir, ou vir, fazer queixinhas, ou defender-se também pela força física: da primeira vez, pode resultar bem em ambos os casos, mas é bem possível que apenas no segundo o problema se resolva logo de vez. Sou um mãe cheia de incongruências. Mas a vida sem os nossos demónios talvez também não seja bem vida.
sexta-feira, 6 de novembro de 2020
Só porque alguém mo lembrou...
... e fui ouvir outra vez. Pronto, tirava de lá a Sarah Palin, se calhar.
Crónica de uma morte anunciada: a da Democracia Americana.
Pelo seu presidente in-chief, ainda. Ou in-shit, já não parece grande diferença. Trump é um homem miserável. Se ainda restasse alguma dúvida, bastava tê-lo ouvido (e visto) ontem. É inacreditável como ainda há, pelo menos, setenta milhões de eleitores americanos que o escolhem. Como ainda não existe, nesta altura, uma vitória clara, expressiva, do seu opositor.
O ainda presidente dos EUA jogou a penúltima cartada para se manter, histericamente, no poder. A última, a mais desesperada, talvez venha a ser convocar, loud and clear, mais loud and clear ainda do que o stand back and stand by atirado em directo, os seus rapazes e raparigas para um motim armado, que o segure na sua Sala Oval. A que sequestrou com a cumplicidade vergonhosa do partido republicano. E os elogios que tenho ouvido, por cá, às suas políticas enojam-me. Há uma diferença entre não alinhar no "politicamente correcto" nem em falsos moralismos - com que, muitas vezes, conocordo - e aquilo que Trump representa. O que se diria do homem se o homem fosse uma mulher.
Espero que Joe Biden ganhe estas eleições. Espero que as instituições americanas resistam, que haja um pingo de decência que, no limite há muito ultrapassado, haja alguém capaz de bater com a porta e dizer enough is enough e que a América vá a tempo de sarar. Eu, na minha arrogância enorme de achar que há uma linha que não poderia nunca ter sido cruzada.
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
De manhã, ao acordar, há uma pequena fracção de segundo em que tudo parece vazio. Um estado de semi-inconsciência, muito ténue, fugaz, em que o mundo ainda não se abateu sobre mim e, por um minúsculo instante, não há mortos, nem números, nem distâncias, nem contágios ou contagens, nem ruína iminente. Nem saudade. Não há, sequer, o canto dos pássaros, nem os gritos esganiçados das gaivotas. Nem uma ameaça de sobressalto. Apenas um nada, imenso, de quietude, imediatamente antes do alarme.
Despido o embuste, há um mundo em ebulição. Há uma linha de calendário, um ano miserável, sôfrego, calamitoso - espantoso, simultaneamente -, que não dá tréguas. Vivemos - nós, no presente - um momento histórico. Diz-se isso, muitas vezes: um momento histórico. Mas, este, é mesmo um tempo extraordinário. Gostaria de viver o suficiente para vir a poder olhá-lo com o distanciamento que merece. Para tentar entender o que, de momento, é absolutamente insano.
quarta-feira, 4 de novembro de 2020
Alianças e Ameaças (não necessariamente por esta ordem e não mutuamente exclusivas)
Se Trump sair vencedor destas eleições, vou chorar. Se for Biden o vencedor, vou chorar na mesma. Só preciso de um rastilho que me permita reconciliar-me comigo mesma. Ainda não sei bem o que a pandemia e o confinamento fizeram de mim, mas pertenço àquele grupo de gente (seca e desagradecida, seguramente) a quem o Universo não deu qualquer sinal. Não descobri talentos adormecidos, não aprendi a fazer pão, não vi unicórnios nem ouvi chamamentos da Natureza e não tive uma epifania nem nada que se lhe assemelhasse. Não fui sequer capaz de bater palmas à janela, mas, neste caso, nem sei bem por que não me terei deixado levar pelo momento: continuo convencida de que a ilusão de que assistíamos ao tal milagre português ficou a dever-se mais à dedicação e capacidade de trabalho e sacrifício de muitos desses profissionais "da linha da frente" - que não passou apenas, é verdade, pelos profissionais de saúde - do que por uma gestão competente do pandemónio em que fomos metidos. Mas era essa, a da saúde, a frente mais visível, na altura e, sim, houve palmas merecidas.
Enquanto a América continua a contar votos contra a vontade de Trump (antes de sair de casa, ouvi alguém dizer que Trump é como aqueles rufias espertalhaços - rufias espertalhaços sou eu que digo - que querem terminar a partida ao intervalo, desde que, nesse momento, estejam a ganhar), parece que o CHEGA está em conversações com vista a uma solução de governação nos Açores. Li, muito por alto, que o CHEGA-Açores quer, mas o Ventura não deixa, o que não deixa de ser uma coisa extraordinária. Eu preocupada com a América e o caos aqui tão perto.
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Tudo bons rapazes
Estou obcecada com o processo em curso para as eleições presidenciais americanas. Entre o estupor e uma espécie de fascínio macabro. Posso perguntar-me quinhentas mil vezes ou mais e nunca hei-de perceber como alguém com a dose mínima de decência consegue apoiar alguém como Donald Trump. Para o cargo mais alto da nação, quero dizer. Como personagem de entretenimento, é uma figura imbatível.
Na semana que
terminou, apoiantes seus, de carro, perseguiram a caravana de campanha de Biden que se dirigia para um qualquer evento no Texas. Um dos veículos conduzido por um dos
fanáticos adeptos de Trump abalroou, intencionalmente, um veículo conduzido por
um dos apoiantes de Biden. Claro, ninguém está livre de ter um apoiante maluco.
Mas, o caso não é esse. Com Trump, o caso nunca é só esse. Apressou-se, como
sempre, a tuitar que adora o Texas, como já disse – no típico tom pateta e
indecente fora dos moldes de um reality-show (aqui, já toda a gente sabe
ao que vai), que espera por terça-feira para despedir Anthony Fauci. Como já
antes tinha gozado com a deficiência de um jornalista, perante uma assembleia
de idiotas que baba (no mínimo, que é o se pode ver) cada vez que o idiota-mor
vomita qualquer insulto. Começo a ter mais “respeito” (com muitas, muitas
aspas) pelos supremacistas brancos assumidíssimos, do que por aquela gente que
se enche de sedas e folhos e botões de punho para dizer que Biden é que jamais
– assim, em francês, com a elegância que se espera. E eu até gosto de francês.
E até acho que há gente que merece ser gozada. À bruta.
Por falar em eleições, parece que os Açores vão ensaiar uma geringonça insular. Passada a quase apoplexia (se ainda não passou – e há gente para quem ainda não passou – passará agora) do PSD com a marosca política de António Costa, é tempo de tentar o mesmo. Como é sabido, todas as indecências políticas por que se rasgam vestes na oposição, passam a aceitáveis, e respeitáveis, quando fazem antever a conquista do tal Poder, seja lá o que isso for. O Poder. Até o CHEGA pode passar a, sim, sim, já chega para haver o entendimento que sempre repudiámos. O sistema é um nojo apenas enquanto não se lhe deita a mão e, na verdade, nesse aspecto, não parece haver grande diferença daquele partido para os outros.
E prepara-se outro
confinamento. Pergunto-me quanto tempo mais (nos) vamos aguentar. O meu filho
pergunta se eu acho que isto acaba alguma vez, como se eu
soubesse alguma coisa sobre o assunto; mas, juro-lhe que sim, que vai acabar,
claro que vai acabar, e abraço-o e encho-o de beijos enquanto posso (posso, não
posso?), enquanto ele ainda me deixa. Há uma idade menos desgraçada para passar
por isto, afinal. São estes 13 anos, em que já não se está a dar os primeiros
passos neste mundo às avessas, mas também ainda não se chegou bem àquela
maravilhosa loucura da adolescência. Como será? Viver a adolescência nestes tempos,
sem poder cometer pecados, sem viver arrebatadamente, a primeira paixão, o
primeiro beijo, a primeira mentira a merecer castigo?
Pela Europa,
multiplicam-se as manifestações contra as restrições impostas pelos diferentes
governos. Porém, há manifestações e manifestações. Há vontades e vontades. Não
consigo perceber as lutas pela liberdade de fazer o que me apetece
quando me apetece e onde me apetece que, mais coisa menos coisa, acabam em
destruição porque sim. Manifestações violentas de gente que acredita em teorias
da conspiração mirabolantes. Outra coisa são as manifestações pela liberdade de
se viver do trabalho e não de subsídios, ou de caridade. Este equilíbrio –
entre a economia e a saúde, no limite indecente da salvaguarda de ambas – é
terrível de fazer. Não queria estar no lugar de nenhum daqueles que têm esta
tarefa entre mãos, neste momento. Não sei se já não teria atirado a toalha e
dado lugar a outro, com a quantidade de gente que sabe qual é a melhor
estratégia a aplicar para tourear o bicho. Há quem julgue que se mantêm lugares exclusivamente pela ganância, pelo interesse próprio, pelo poder (ia dizer pelo prestígio, mas, creio que, em política, isso já não existe). Eu também. Excepto, talvez, em
casos destes. Alguém consegue passar por tudo isto sem uma pontinha que seja de
sentido de Estado e de serviço público? Se calhar há e eu estou só a ser demasiado ingénua, ou coisa pior.
domingo, 1 de novembro de 2020
Sobre algumas mortes
Caminho sozinha e distraída pelas ruas estreitas do mercado. Terminei as poucas compras que não programei e tenho um tempo sem pressa, inútil, que posso desperdiçar a senti-lo correr, devagar, como eu. Não há muita gente, e o sol aquece sem sufocar, desenhando sombras traquinas que se esquivam à minha passagem para logo assomarem, adiante, em negro baço, sobre os umbrais das portas de madeira soberbamente esculpidas que se abrem para lojas de maravilhas amontoadas, de tesouros multicolores, como as cavernas de salteadores dos meus contos de criança. Um homem que nunca vi saúda-me e pergunta-me pelo meu marido. Sabe o seu nome e onde trabalha, e deseja-me um bom dia, que retribuo com um sorriso forçado, num espanto resignado. Passo pela velha sem idade, de chapéu de palha com tranças pretas de lã e a longa saia vermelha de finas riscas brancas, sentada no fundo da escada com a trouxa aberta, espalhada no chão, cheia de verduras mais frescas do que ela, os rabanetes em carne viva, os alhos duros e roxos, a salsa, os coentros verdes da esperança que se lhe escapa a cada dia. Sorri-me, desdentada. Acabo por comprar mais qualquer coisa. Há sempre mais qualquer coisa. Hei-de cruzar-me com algum menino descalço que se voluntariará para me transportar a pouca carga que carrego, a troco de uma compensação miserável; pelo menos, a mãe - ou uma irmã pouco maior que ele - terá com que preparar algo a que possam chamar uma refeição.
Uma algazarra miúda,
a princípio, aproxima-se, arrastando um emaranhado de gente que brota, aos
tropeções, de outras ruelas ainda mais estreitas. Reconheço os gritos
estridentes, à laia de cântico tribal e agudo que afunila em sintonia com a
multidão alvoroçada antevendo a desgraça. Encolho-me para deixar passar sem que
me arrastem na sua pressa apocalíptica. Os gritos soam mais e mais alto, um
frenesim atarantado, e atento ao fundo da viela, para onde todos correm numa
aflição que me agonia. Num assombro, esperado por outros, um grupo de homens
envergando túnicas brancas, imaculadas, irrompe por entre a mole de gente,
sustendo uma liteira enfezada que mais parece levitar como um tapete voador
sobre as suas cabeças. Num andor macabro, um corpo jaz como uma múmia, envolto
num lençol alvo como uma nuvem de algodão-doce. A multidão atabalhoada, numa ordem
que só a eles diz respeito, abraça a padiola fúnebre mais os seus
gatos-pingados e parte sem nunca parar, em debandada, com o coro de gritos em
música de fundo.
Preciso de um
momento para me encontrar. Confundo o número de ruelas à direita e à esquerda,
e ainda não me oriento bem na malha labiríntica da medina. Subitamente, os
sacos pesam-me em penitência e sinto as unhas cravadas na palma da mão. Um
menino puxa-me os sacos e pergunta se preciso de ajuda. Por uma vez, deixo que,
antes de ir-se, me acompanhe até ao arco de pedra, à entrada, onde o sol me
apazigua.
Porque, dizem, hoje é dia de finados, amanhã, no México, celebra-se o Dia dos Mortos, morreu Sean Connery (uma enorme vénia, não há muito que precise de ser dito) e a Morte desassossega-me. Para lá do medo de morrer.