segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Terrorismo

 

Sei que foi há pouco mais de três anos, porque o escrevi num texto, e fui procurá-lo. O meu filho, com 10 anos, na altura, perguntou-me se a A. era terrorista. A A. é uma amiga muçulmana. Portuguesa e muçulmana.

Nessa altura, lembrei-me de José Saramago, “um pessimista assumido, mas não inteiramente incondicional”, como continuo a vê-lo, além de ser um dos meus escritores: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais” disse, um dia, Saramago.

A pergunta do meu filho veio na sequência dos atentados em Barcelona. Como habitualmente, a associação entre terroristas e muçulmanos é imediata. Como é – ou devia ser – óbvio, nem todos os terroristas são muçulmanos e nem todos os muçulmanos são terroristas. Foi por aí que comecei a tentar explicar-lhe o que não tem explicação. A não ser pelo ódio. E, esse, infelizmente ou felizmente, não escolhe idades, nem cores, nem credos, nem géneros. Mas escolhe uma raça: a nossa. A mais inteligente de todas e a que pode ser mais estúpida, também. Foi por isso que, naquele momento, também me lembrei da cegueira branca que Saramago ensaiou num dos mais belos e mais terríveis livros sobre as entranhas sombrias da nossa alma. Mesmo a mais pura. Do que seremos capazes, se nos virmos ameaçados na existência, a nossa, tal como a conhecemos?

Acredito que o facto de ter vivido num país muçulmano – embora relativamente liberal, para dizê-lo assim – me faça ser mais prudente e me reserve de não embarcar na teoria de que o Islão é uma religião de terror. Não por medo, mas porque, de facto, também conheci o outro lado. Um lado de que não comungo, que muitas vezes não entendo e de que continuo a não gostar, mas que está bastante longe de incitar ao terror e à morte dos infiéis. Todas as religiões têm o seu lado obscuro, à mercê da usurpação por fanáticos que pretendem apenas impor a sua vontade. Pela força, pelo medo, pela morte. Já tivemos a Inquisição. Nos EUA, neste preciso momento, há um bando de terroristas brancos, eventualmente tementes a um deus (um qualquer, suponho que para alguns propósitos seja totalmente indiferente), armados até aos dentes, às ordens do seu presidente – stand back and stand by, que ninguém esqueça, porque dia 3 de Novembro está aí à porta – e, no entanto, há gente séria, às direitas e altamente democrática, sem vergonha de apoiar um homem como Donald Trump. Um visionário, que só ainda não foi agraciado com o Nobel da Paz, porque o mundo está sequestrado por pedófilos, malfeitores e conspiracionistas (até teria graça, se o caso fosse para piadas), como nos alerta essa organização impoluta e pacifista que é o QAnon.

Mas, há de facto uma linha que é urgente traçar. O acto hediondo da decapitação de Samuel Paty, o professor francês cujo “crime” foi ter mostrado aos seus alunos caricaturas de Maomé, deve ser condenado por todos, a começar pela própria comunidade islâmica. Não pode haver lugar para garantias de respeito pela liberdade religiosa, ou outra qualquer liberdade, quando essa liberdade é instrumentalizada para impor uma vontade pela força e pela morte crua. E também não pode haver receio de chamar terrorista a um terrorista só porque esse terrorista é muçulmano, é cigano, é negro ou é branco, é mulher ou homem ou nenhum dos dois, azul às pintinhas, ou o que mais lhe aprouver. Não é a minha liberdade acaba onde a do outro começa: é a liberdade não poder ser um livre-trânsito para compreender e aceitar quem a utiliza para instalar, pela violência extrema e fútil, a sua agenda. Não sei qual é a melhor maneira de fazer isto, mas sei que estamos a perder a batalha. Nós, os que acreditamos nos valores democráticos e no Estado livre, igual, fraterno e laico. Em França e fora de França.

 

Naquela altura, há três anos, pela primeira vez, tentei – tentámos, o pai e eu – explicar ao meu filho a diferença entre terrorismo e religião; concretamente, entre terrorismo e Islão. E que a A. não é terrorista por ser muçulmana, evidentemente. Não muito tempo depois, levámo-lo a esse país onde vivemos, ainda ele não era vivo, como diz o próprio sobre o tempo antes do seu nascimento. Fizemos uma viagem maravilhosa. Abraçamos os amigos que ainda lá temos e, a esta distância, foi a melhor decisão que tomámos. Não sei quando voltaremos a sair, a correr mundo. Não sabemos o que teremos deixado de fazer por muito, muito tempo. Tentamos não perder demasiado. Não perder o que realmente importa. Ensinar-lhe, todos os dias, que, apesar de não compreendermos as opções dos outros, de não partilharmos da mesma opinião muitas vezes, não somos necessariamente inimigos. Mas ensiná-lo, também, que respeitar não significa submetermo-nos a ou abdicarmos de nós próprios, dos nossos hábitos, costumes ou crenças e muito menos significa viver no medo, embora, o medo faça parte da nossa vida. Nunca como hoje. E, isto, eu também já tinha escrito, pensando que não viveria outro pior

E que, nunca, nunca mesmo, podemos impor a nossa vontade pela intimidação bruta e criminosa. Mesmo que a nossa vontade parece a mais democrática das vontades.

 

Saramago (por acaso foi a avó de Saramago) também disse, O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer

Por falar em beleza, e em esperança, vi o documentário de David Attenborough. Se eu mandasse, como se diz, passava-o em todas as escolas. Pelo menos, em todas as escolas.

domingo, 18 de outubro de 2020

Tons de Outono


Gosto de me sentar naquela esplanada ampla. Sobretudo naquela. A ouvir o mar. Em dias calmos de Outono, o pontão de pedra gasta, esboroada, que se desenha num quadro, ao fundo, à minha esquerda, surge um pouco ao abandono. Espantosamente belo na sua solitude. Em dias assim, a água estremece levemente, num palpitar sereno, por um largo período de tempo. Generosamente iluminada, ainda. Uma pele suave, prateada, que ondula languidamente sob o imenso céu azul na sua soberba turquesa e nua, ameaçando incendiar-se ao final da tarde. 

Mas, em dias de mar agitado, as ondas crescem ao longe para virem explodir na rocha costeira, subindo vertiginosamente pela pequena torre do amarradouro antes de se projectarem, com estrondo, em estilhaços salgados, brancos de espuma, multi-direccionados, fulgurantes como raios de sol. Nesses dias, posso ouvir o queixume da rocha sob a inclemência da água, que, do outro lado, faz arrastar sobre a areia as suas ondas brancas, majestosas nos seus vestidos de folhos. Quando, ao chegar à praia vazia, se deixam tombar e desfalecem, desfazem-se das suas pregas perfeitas, esvaziando-se, apressadas, num crepitar morno e lamuriento. 

Também gosto do pontão em dias assim. De saudade imperfeita. Assombrado pela fúria caprichosa da intempérie que afasta os que não suportam os seus humores. 
Se não houver ninguém, posso roubar o tempo para mim. Suspensa de memórias que guardo, de palavras que li e ouvi e onde, por momentos, por acaso, me encontrei; num pedaço a que não pertenço, numa urgência que intuo e ao mesmo tempo rejeito, por achar que me confundo. Porque não sou tudo o que escrevo e não escrevo tudo o que sou. E, no entanto, é como se nada ficasse por dizer.
Também guardo silêncios. Também neles me encontro. Nos silêncios de que me faço. Em tons quentes de Outono. Os meus.



sábado, 17 de outubro de 2020

A vida à beira do abismo

 

As imagens que tantas vezes vemos de vidas desfeitas pela catástrofe – como a que há três anos transformou num inferno uma parte do país que ainda sangra – parecem-nos, à maioria de nós, creio, demasiado distante. Podemos comovermo-nos genuinamente com o sofrimento atroz de quem perde mais do que deveria ser permitido, se de permissão se tratasse, mover montanhas para ajudarmos no que nos for possível, mas, quem não vive na pele essa tragédia, verá sempre com algum distanciamento o que de mais terrível acontece aos outros. Não por falta de empatia, não por despudor, não por indiferença, não por ignomínia – mesmo sabendo que existe gente capaz de tudo isso –, mas por um certo entorpecimento emocional, subconsciente, até, sem o qual a vida se tornaria demasiado insuportável. Por não podermos acudir a todas as agruras. Por nem todos sermos capazes de abdicar do que temos – muito ou pouco – em função dos outros, dos que mais precisam e que, tantas vezes, apenas por acaso não estão no nosso lugar. Sei que parece o mais vazio dos chavões, mas tenho uma profunda admiração por quem é capaz de largar tudo e atirar-se de cabeça numa viagem aos confins da miséria humana para lamber feridas, dar colo, cuidar, tratar, amar, ajudar como pode os mais esquecidos dos mais esquecidos, como fazem alguns médicos, enfermeiros, professores, voluntários de estas e outras áreas, preocupados apenas em ajudar, em dar a mão.

Esta pandemia, que muitos ainda acham que é um capricho de massas em debandada histérica, se alguma coisa deixar de bom, será a de nos lembrar (não sei por quanto tempo depois de a vencermos – e vencê-la-emos, como já vencemos outras) como o nosso pequeno mundo vale bastante menos do que pensávamos; do que pensamos. As notícias que continuam a chegar sobre pessoas que, até Março, se sustentavam sem sobressaltos – pagar a renda, usar o seu automóvel, pagar a escola privada dos filhos, se assim o entendessem, programar férias, almoços, jantares, etc – e, de repente, se vêem obrigados a pedir ajuda a instituições de solidariedade, deixam uma sensação de vulnerabilidade bastante difícil de racionalizar. E não se trata de desvalorizar a pobreza sistémica que já nos devia envergonhar a todos antes de Março. Até aí, já Portugal tinha (não teve sempre?) um nível de pobreza insuportável que muitos de nós – onde me incluo – vão tentando amenizar, pelo menos em consciência, com a participação em campanhas de auxílio mais ou menos conhecidas. Do “Banco Alimentar” a outras iniciativas mais modestas, mas que fazem a diferença nos bairros mais pobres de que, cada um de nós, estará mais perto. Mas, agora, até quem tinha vidas mais ou menos organizadas – tal como aqueles a quem a desgraça bateu à porta, em diferentes “Pedrogãos”, aqui ou por esse mundo fora – se vê atirado para um abismo de onde não sabe como voltar. Podemos pensar como é possível, por que não tiveram a prudência de poupar em tempos de bonança, como a formiga da fábula de Esopo? Excepto que a vida não é uma fábula. E poucos terão imaginado a possibilidade de ficar sete meses impossibilitados de exercer a sua profissão. Há sectores de actividade que demorarão mais tempo a recuperar do que aquele de que as pessoas dispõem para sobreviver com o mínimo de dignidade.

Agora, que já nem os mais ingénuos acreditam no poder redentor da guerra que nos ia fazer a todos de bondade imaculada, que os pivots de televisão mais respeitados deixaram de nos ministrar sermões a diário (aleluia) e que a realidade voltou a lembrar-nos que continuamos a ser capazes do melhor e do pior e que isso não depende de sinais divinos na forma tentada nem de vírus nem de outras peçonhas, resta-nos a consciência da nossa fragilidade; e a de que não há tragédia nenhuma capaz de converter um imbecil convicto.


Entretanto, vá lá saber-se porquê, lembrei-me de ter ouvido ou lido qualquer coisa sobre este documentário. Não encontrei legendado em português (na verdade, não procurei muito), mas resolvi deixá-lo aqui assim mesmo.  Voltarei mais tarde, para corrigir, se for o caso.




E, ontem, comecei a ver o de David Attenborough, mas, estava tão cansada que não fui capaz de resistir e adormeci logo no início. Vou recuperá-lo hoje. Ouço-o sempre com imenso prazer, contagiada pela sua paixão pela Natureza e pela Vida.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O que eu gostava de ter escrito...

 ...sobre a "sugestão" fofa e não autoritária de António Costa, se tivesse competência para tal, o que não é o caso, como facilmente percebe quem por aqui se perde.

Acho que não devia transcrever o artigo completo, mas, precisamente por serem poucos os que tropeçam nisto, muito menos, a Susana Peralta, abençoo-me, e a ela, pelo artigo. E perdoo-me, até ao próximo pecado.

"Esta semana, o Governo entrou oficialmente em derrapagem com a ideia de nos obrigar a andar com uma aplicação de rastreamento de contactos no telefone. Esta medida é inútil, quase de certeza. E é perigosa, de certeza. Vamos por partes.

Será que a aplicação serve para alguma coisa? Segundo a evidência disponível, estas soluções têm efeitos duvidosos no controlo da pandemia. É o que afirma o artigo Automated and partly automated contact tracing: a systematic review to inform the control of COVID-19, publicado em agosto no The Lancet Digital Health por uma equipa da University College of London, partindo da análise de cerca de 4000 estudos, baseados em modelos matemáticos e na experiência de epidemias causadas por vários vírus, como o MERS, o Ébola ou o SARS. Isobel Braithwaite, uma das autoras do estudo, disse ao Financial Times que estas aplicações não são uma “silver bullet” contra a covid-19.

Por um lado, estas aplicações só são efetivas com a adesão da quase totalidade da população. Por outro lado, não dispensam a contratação de muitas equipas de rastreadores de contactos, ou seja, profissionais que contactam as pessoas assinaladas pela aplicação como potenciais contágios. Para além da eficácia duvidosa, a aplicação levanta problemas de equidade. Nem toda a gente tem smartphones, nem todos os smartphones têm espaço, baterias que duram todo o dia, ou sistemas operativos compatíveis com este tipo de aplicações. As populações mais vulneráveis, como os idosos, os sem-abrigo, ou os mais pobres, são os que mais provavelmente ficam de fora. Até pode ser que estes estudos internacionais não se apliquem à StayAway Covid e que ela seja espetacular a vários níveis. Como já lá vão uns meses, o Governo podia começar por nos dizer quantas pessoas descarregaram a app, quantos contactos foram rastreados com sucesso, quanto tempo ganhou relativamente ao rastreio manual, quantos surtos detetou graças à dita. O mínimo que se exigia era alguma ideia da eficácia da política antes de passar à versão draconiana.

Henrique Barros, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e do Conselho Nacional de Saúde, disse ontem ao PÚBLICO que a ideia da obrigatoriedade da aplicação é autoritária e estúpida. Como alternativa, “pode-se aumentar o número de comboios, de autocarros, negociar horários de trabalho diferenciados, deixar ficar em casa quem pode ficar em casa.” No capítulo de coisas que o Governo pode fazer, tenho outras ideias. Das várias medidas que foram sendo anunciadas para os lares, que são os locais onde morre mais gente, em que ponto da implementação estamos? E com que resultados? Quantos técnicos de rastreamento de contactos foram contratados? E mais: já que estamos tão digitais, podíamos ter um portal com dados regionais ou municipais da situação pandémica para nos ajudar a tomar decisões informadas? Como está a capacidade dos cuidados intensivos em cada região do país? Para além do número de casos, que perfil etário têm os infetados, quantos casos graves, quantos hospitalizados?

Tudo isto custa dinheiro e dá trabalho. Já forçar a utilização de uma aplicação é mostrar obra, mas à nossa custa. O mesmo acontece com a decisão de impor máscara todo o dia às crianças nas escolas, outra medida de eficácia duvidosa que não foi adotada em muitos países europeus. A alternativa, que custava dinheiro e dava trabalho, era ter contratado mais professoras e utilizado espaços públicos desocupados para dar espaço à escola e permitir que a comunidade educativa vivesse com mais qualidade.

Vamos à parte do perigo. Descarreguei do site da Comissão Nacional de Proteção de Dados a deliberação 2020/277, do dia 29 de junho, referente à StayAway Covid. Afinal, o sistema é uma iniciativa do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Ciência e Tecnologia e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Esperava que o Governo fosse o dono da iniciativa ou, no mínimo, estivessem disponíveis as condições do caderno de encargos ao abrigo do qual delegou nestas duas instituições o desenvolvimento da aplicação. Incluindo, se não for pedir muito, quanto pagou pela aplicação. Para me obrigar a instalar uma aplicação que regista potenciais contactos que tive, esperava menos leviandade.

Leviandade, disse ela? Na melhor das hipóteses. Na pior, um cheirinho a autoritarismo que não tem lugar na nossa democracia liberal. António Costa disse ontem ao PÚBLICO que sentiu que “era preciso haver um abanão”. Acontece que em democracia são os eleitores que dão abanões aos políticos, e não o contrário. Mais tarde, confrontado por jornalistas com o eventual caráter autoritário desta medida, explicou em declarações à SIC Notícias que é igualmente autoritário ter bares encerrados. Podemos discutir se faz sentido ter os bares encerrados. Mas não podemos confundir autoritarismo com o exercício normal da autoridade democrática do Governo. Esta aplicação regista potenciais contactos que tive e a obrigatoriedade da dita dá poder a polícias para espreitarem o meu telefone. Encerrar bares não faz nada disto.

A cereja no topo do bolo foi quando António Costa disse que “teremos de ser tão menos autoritários quanto mais as pessoas voluntariamente aderirem todas”. Esta frase atropela duas vezes a minha liberdade individual. Subordina o meu livre arbítrio à ideia moralizadora do “bom comportamento” do grupo. E, numa perspetiva mais prática, deixa claro que o resultado final será sempre o mesmo: voluntariamente ou à força, a StayAway acabará no meu telefone. Valha-me o Parlamento."

Susana Peralta, Stay Away Covid: será que António Costa perdeu a noção?, PÚBLICO


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Posso usar máscara na rua

Contrariada, mas ainda posso. Mas não vou instalar aplicação nenhuma. Lamento muito, se pareço irresponsável, como me dizem. Já sei que o Google sabe praticamente tudo sobre mim, desde os sítios que visitei, às fotografias que tirei, aos quilómetros que fiz e mais uma quantidade de coisas que nem imagino. Mas, não...Peçam-nos para termos cuidado, para colaborarmos no esforço conjunto e etc, mas, não abusem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Textos inacabados


Sobre o assassínio de Ihor Homeniuk, às mãos – e, aparentemente, aos pés e bastonadas – de três inspectores do SEF sem tempo nem necessidade de ir ao ginásio. Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, munidos daquela raiva animalesca que transforma homens em bestas porque sim, e porque não também, descarregaram todas as suas frustrações num homem manietado. Bater em gente que não tem como se defender, de preferência estando acompanhado pelos restantes elementos da matilha, eis como costumam gozar os mais cobardes entre os cobardes. 

Dizem as autoridades que Ihor reagiu mal às tentativas de o fazer entrar no avião que o levaria de regresso ao seu país e, como é sabido, há quem não goste de ser contrariado. Ihor Homeniuk foi brutalmente agredido: várias costelas partidas, hematomas na caixa torácica, no abdómen uma marca compatível com a sola de uma bota da tropa, preso durante horas com as calças pelo joelhos e cheiro a urina. A morte de Ihor começou por ser declarada “natural” e o mais que se lê no relato da investigação é de uma violência atroz. Como é que foi possível? Não chega haver demissões. É tudo demasiado escabroso.

Sobre o senhor professor doutor Francisco Aguilar e o seu repúdio pela "miopia moral da fêmea", de todas as fêmeas, principalmente, daquelas que ainda não superaram a "inveja do pénis" e, como tal, têm um "ódio genético" ao "privilegiado genético, isto é, o biologicamente privilegiado por Deus", isto é, o homem. Não sei que fêmeas e machos é que o senhor professor doutor conhece, mas, tudo isto teria imensa graça, não quisesse o senhor professor doutor ensinar coisas parecidas com aquelas às fêmeas e aos machos com quem tropeça lá nas aulas de Direito Penal, ou lá o que é. Quanto a inveja de pénis, o que me parece é que há machos que talvez não tenham sido assim tão biologicamente privilegiados por Deus e precisam de se entreter com qualquer outra coisa. Por exemplo, a escrever artigos para revistas científicas de "circulação estrita" (logo por azar, a circulação alargou-se) e elevada exigência, mesmo que a opinião expressa nesses artigos não seja para levar a sério

O escandaloso drama de tudo isto é o facto de Francisco Aguilar ser, de facto, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa há décadas, ser responsável por "ensinar" e "avaliar" futuros profissionais na área e poder continuar a espalhar a sua "liberdade científica" se o caso não tivesse vindo parar à comunicação social. Os "arrependidos" de lhe terem dado cobertura só se arrependeram porque a coisa veio a público. Enquanto a liberdade do dito cujo se passeava apenas pelos corredores e pelos anfiteatros da Faculdade, estava tudo muitíssimo bem e, provavelmente, recomendava-se.


Sobre o professor francês, tatuadíssimo, que se viu impedido de ensinar crianças num jardim-de-infância, depois de os pais de um menino de 3 anos se queixarem de que o filho passara a ter pesadelos, impressionado com o aspecto de Sylvain Helaine. Nem sei bem o que pensar. Gosto de algumas tatuagens e gosto de ver gente tatuada. Alguma gente. As tatuagens são como os chapéus: podem ser magníficos e, no entanto, um absoluto desastre em algumas cabeças; o que não deve impedir ninguém de os usar, obviamente. O mesmo se aplica às tatuagens. Só ainda não me atrevi, porque tenho uma irracional e quase histérica aversão a agulhas. Quando preciso de fazer análises de sangue, só não choro porque já não tenho idade. Mas, como se diz, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O professor há-de ser competentíssimo e simpatiquíssimo e todos os outros superlativos adequados e fofos de que nos possamos lembrar, e ninguém poderá dizer que não entende o susto do menino de 3 anos.


Sobre a miúda que quase atropelei, há pouco mais de uma semana. Uns 15 ou 16 anos. Não calhou. Valeram-nos os anjos da guarda, o meu e o dela, eventualmente os meus 30 anos de experiência de condução, cá dentro e lá fora, o facto de não haver ninguém atrás de mim nem ao meu lado, nem dentro do carro, nem fora do carro e aquilo a que, alguns, chamarão destino. Não era o dia. E, tudo isto porquê? Porque o semáforo estava aberto para mim e a miúda, de headphones bem colocados e sem deixar de olhar para o telemóvel, resolveu sair do passeio, bruscamente, e atravessar-me na minha frente. Ainda não sei como o carro parou onde parou, a menos de nada da coxa dela. Depois do susto de ambas, do alívio de ambas, apeteceu-me dar-lhe um puxão de orelhas, obrigá-la a entrar no carro e levá-la, em segurança, lá para onde quer que fosse que ela fosse. E tudo isto a propósito do limite entre a irreverência e a palermice pura. É que já me parece palermice pura aquela defesa da liberdade dos que querem viver a covid como lhes apetece. Eu também acho que cada um deve viver como lhe apetece. Morrer como nos apetece; sobretudo, morrer como nos apetece, já que, viver, não nos perguntaram se queríamos. Simplesmente, tenham algum dó de quem estiver ao volante, nesse momento de libertação.


E o nosso Berardo. Outro magnífico exemplar que a pátria pariu com a ajuda de uns quantos, quase sempre os mesmos, que nada tem de seu, muito menos dívidas. Parece que está a construir uma obra sem ter licença de construção para essa mesma obra. Deve ser mais ou menos o mesmo método que usou para ampliar a casa-de-banho com vista para o Palácio das Necessidades (parece piada, não é?), que o tribunal já ordenou que fosse demolida, por ser ilegal, mas que continua de pé.


E mais coisas, mas, de momento, não tenho mais tempo. Até escrevi aqui, directamente, em não em word, primeiro, como é meu hábito.


segunda-feira, 12 de outubro de 2020


 

Ignoro se vivemos outras vidas. Se vivemos, já fui de Roma. De outros sítios também, de muitos outros sítios, mas Roma tomou conta de mim desde a primeira vez que a vi. Tudo nela me assalta e me desperta, tudo nela me invoca. Já vivi a infâmia burlesca aclamada freneticamente na arena sangrenta do Coliseu. Já passeei pelos corredores empedernidos do Fórum Romano. Já percorri todos os extensos caminhos da Via Appia, afagando as pedras maciças e largas, e serão seguramente meus alguns dos ossos confiados piedosamente às entranhas da terra, no coração das catacumbas sob o solo, entre túneis labirínticos, lúgubres, que, de tempos a tempos, o competentíssimo guia relembra não podermos fotografar senão junto à memória. Espreito, então, as criptas escavadas na parede, a diferentes alturas e momentos, talhadas pelo punho do tempo ou do homem, à medida, algumas adornadas de símbolos e gravuras e dos frescos que ainda resistem na companhia dos mortos que veneram e ainda guardam, entre santos, e mártires, e pontífices devotos. Sobressaltam-me os ruídos metálicos, os rugidos enrouquecidos que sobem de tom sobre o eco do silêncio que se impõe, subitamente, como um espírito que se houvesse materializado entre paredes e túmulos, para desassossego dos vivos.

A cidade é suja, sim, algo caótica e, heresia das heresias, os italianos, em geral, não são tão acolhedores como se diz, e Roma não é excepção. A excepção são os italianos da belíssima Toscana, e Florença é simplesmente magnífica. Mas, Roma entranhou-se-me na pele. Cumpro a penitência com irrepreensível deleite. Basta-me a imponência das ruas, as rugas do tempo riscado a cada esquina a que me rendo sem queixume, o burburinho da História narrada sobre as pedras, o cheiro dos séculos passados que me transporta à dimensão imperial da época, fundindo-me em memórias guardadas como relíquias. A cada regresso, deixo por lá um pedaço de mim. É um abuso dizê-lo assim, a cada regresso, porque, na vida que vivo e recordo, só a visitei duas vezes. Mas eu é que sei. Dos pedaços de que me faço.





domingo, 11 de outubro de 2020

O Estado são eles.

 

Ninguém sai bem nos retratos da tomada de posse relâmpago do novo presidente do Tribunal de Contas, e também tenho qualquer coisa a dizer sobre o assunto: António Costa pode jurar a pés juntos que não quis calar vozes críticas e incómodas, com a mesma frescura saloia com que fingiu apoiar o presidente do Benfica, como adepto e não como primeiro-ministro, que ninguém acredita na mesma; Marcelo Rebelo de Sousa pode garantir nunca ter tido dúvidas quanto à limitação de mandatos e, portanto, quanto à substituição de Vítor Caldeira, que já toda a gente percebeu por que sentiu, entretanto, necessidade de se multiplicar em explicações; e Rui Rio, bom, Rui Rio continua amarrado a uma estratégia de não se deve bater no ceguinho, o que seria, não contem com ele para política do bota-abaixo, e o ceguinho agradece e lá vai aproveitando a boa-vontade dos outros para melhor impor a sua.

Como duvido bastante da ingenuidade que não abunda nos corredores e nos bastidores da política, parece-me que isto está mesmo tudo ligado, que é como quem diz, ora agora mando eu com a vossa bênção e, quando mandarem vossas excelências, corro a cobrar o dízimo, ou o que lhe queiram chamar desde que não me estraguem o pote.

E podia falar disto tudo de uma forma mais séria, mas, já não há paciência.

Podemos atirar as culpas para esquerda, para os comunistas, para os socialistas, para os discípulos de Sócrates – e saberá deus, se existir, o que me enerva a retórica do “inocente até prova em contrário” aplicada àquele senhor –, mas, se Portugal continua como a pocilga privada e de luxo de uns quantos é porque esses quantos se espalham como um cancro por todos os quadrantes políticos, onde se jura combater, enquanto oposição, o que nunca se deixa por fazer enquanto governo; em estado puro ou em coligações mais à medida dos partidos do que do país. É o agarrem-me se não eu faço ou não faço, dependendo do que mais me convier quando chegar a minha vez. Não sei bem como é que quebramos o ciclo, mas não há-de ser rosnando uns contra os outros, sim, nós somos maus, mas vocês são muito piores. E há um certo elogio a uma certa direita a que acho sempre uma certa graça.

Faz falta, no entanto, uma oposição séria. E, nessa oposição, uma direita não maledicente – como Rio não quer, de maneira nenhuma, cruz credo – mas que seja enérgica, crítica, responsável, que se imponha como alternativa decente e não como adoradora de protótipos fascistas. Se a extrama-esquerda anda obcecada com o politicamente correcto e com as críticas a Trump, Bolsanaro e os cachorrinhos de ambos, mais a coelhinha Acácia do outro, a extrema-direita anda fascinada com o atropelo às regras que sustentam a civilidade. De repente, no combate político, é aceitável usar de todos os insultos, de todas as ofensas, de todas as mentiras, de todas provocações escabrosas para chegar ao poder. E, se tudo isso não bastar, é aceitável que um presidente incite à violência entre os seus concidadãos. Afinal, a democracia não é o nosso objectivo, não é? Aparentemente, a democracia não é o objectivo de nenhuma das partes, mas, os que defendem o método-trump, querem fazer os outros crer que têm uma visão mais clara, uma leitura mais avisada e mais objectiva dos factos do que aqueles que abominam tudo o que Trump representa. É nisto que estamos.

Entretanto, estive a ver as 20 fotografias da semana do The Guardian. Reacendeu-se o conflito Nagorno-Karabakh e há, por isso, mais uma guerra aberta a colher vítimas, a esmagar vidas. E sonhos. Pergunto-me como se pode sonhar rodeado de escombros e penso na minha própria insignificância. Alguma vez eu seria capaz de defender assim a minha casa? Alguma vez o meu filho encontraria esperança numa escola resgatada dos destroços pela vontade dos que recusam baixar os braços e desistir? Sei lá do que falo, quando falo de guerra...


Celestino Arce Lavin/Zuma/Rex/Shutterstock


Ahmad Al-Basha/AFP/Getty Image



Mas, sim, há que acreditar. Viver com algum sentido de humildade, consciente da ténue linha que separa a sorte do azar, a claridade do abismo. É esse equilíbrio que tento. Lembrar-me, e ao meu filho, que a dignidade do outro nunca pode ser menos do que a nossa, mesmo em cantos opostos do mundo, mesmo não dispondo da mesma liberdade, nem dos mesmos privilégios. E que todos temos o mesmo direito de sonhar e de lutar por uma vida melhor.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Sobre vírus e sobre curas

 

Donald Trump ensaiou o maior logro da História contemporânea. Após o desastre que foi aquele não-debate presidencial, Trump precisava de uma manobra de diversão que o fizesse ressuscitar da toca em que se enfiara depois de instigar os seus cães de caça contra todos os que vierem a ousar exercer o seu direito de voto contra si e depois de lhes ter ordenado que se mantenham a postos para a rebelião armada que o próprio alimenta todos os dias desde que foi eleito. Para o efeito bombástico pretendido – e duramente criticado pela miserável gestão da pandemia – restava-lhe um milagre de falsete; igual a si próprio, portanto. Assim, fingiu ter sido atacado pela doença do século e fingiu ter-se curado por obra e graça da ciência que despreza, com a cumplicidade de uma equipa médica sequestrada pela fanfarronice daninha do presidente. Curadíssimo da maleita que nunca teve, promete aos enfermos que hão-de vir remédio mais consensual do que luzes tremendas e chás de lixívia e rejeita categoricamente debates virtuais com o homem a quem odeia quase tanto como a Obama. Percebe-se. Se Biden recusar, pode acusá-lo de ser um cobarde. Se Biden aceitar, lamentará não poder infectá-lo, mas terá conseguido mais um espectáculo à sua imagem. É tudo quanto lhe interessa: safar-se a qualquer a qualquer custo, mesmo que, para isso, queime tudo à sua passagem. Não é a América que ele quer grande outra vez: é o seu império, o seu mundo, os seus bonecos de palha, encerados e reluzentes como troféus.

Esta é a minha versão dos factos. Alternativa, como mandam as novas regras. É insano, bem sei. Mas estamos em 2020, o ano de todas as pestilências...

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Celebrações

 

Celebraram-se os 110 anos da implantação da República Portuguesa. Como habitualmente, teceram-se elogios e teceram-se críticas e a data foi assinalada com a pomposa anormalidade, já que este ano nada é normal. Nem a pompa, nem a circunstância. Nem o tempo. Não sei se serei a única a quem estes últimos meses parecem décadas, um atropelo de acontecimentos e estados de alma que há que gerir com pinças, além das máscaras, antes que o equilíbrio que vamos tentando nos esborrache como mosquitos. Adiante.

Os monárquicos que criticam os que criticam a monarquia apontam o dedo aos mesmos vícios que os republicanos (não os da variante trumpesina, que esses são uma mutação genética que ainda carece de explicação científica, social e etc) vêem na manutenção de um regime de Suas Altezas Reais: servem ambos burguesias instaladas, com a única diferença de que, pelo menos, a Realeza tem uma coisa que se chama berço, ou lá o que é. Ou, como me dizia há uns anos um amigo espanhol, sim, nós temos que suportar, com os nossos impostos, uma família real inteira, incluindo descendentes e animais de estimação, mas, vocês, portugueses, suportam coisa idêntica, nas regalias vitalícias de todos os Presidentes da vossa República, e talvez o saldo não seja muito melhor. Mais ou menos isto. É possível, sim; mas, pelo menos, somos nós, como povo, que os elegemos e os demitimos, os presidentes, pelo nossa vontade e direito de voto. Se não o fazemos bem, isso já é outra coisa, e é uma coisa que urge mudar para (muito) melhor, é outro facto.

Entre as arrelias do momento, a direita acusa a esquerda – e o PS em particular – de usar o Estado para servir os seus interesses pessoais e políticos. Infelizmente, os jobs criados para os boys, a família e os amigos que enchem o círculo político não são práticas exclusivas da esquerda ou do PS, antes de uma forma medíocre e generalizada de estar na política portuguesa: alterna-se o poder, alteram-se os jobs e alternam-se os boys, mas o fedor permanece. Isso nota-se mais nos governos de esquerda do que nos governos de direita? Dizem que sim, e é provável. Mas não fiz as contas. Não me apeteceu, ainda; ando há muito de costas voltadas ao poder político e, apesar de saber o perigo – a injustiça, até…eventualmente... – em que se incorre ao afirmar que eles são todos iguais, na verdade, se fossem substancialmente diferentes, não haveria Marquês, não haveria BES, não haveria Lux, nem outras operações de regeneração dos poderes da política, da democracia e da justiça, fingindo que não se tinha, até aí, dado por nada, nem à direita nem à esquerda. É verdade, o caso de Sócrates é o mais obsceno (é?; entre o Marquês e o Lux, venho o diabo do senhor Salgado e escolha). Por quase tudo e por mais alguma coisa, como essa que nos obriga à presunção de admitir que é possível o primeiro-ministro de um país ter um amigo como Santos Silva, muito rico e muito abnegado, e uma mãe como a dona Adelaide, herdeira de fortunas e prédios e andares, dona de cofres generosos no acto de (en)cobrir as despesas de um filho esbanjador, que não tem nada de seu porque não precisa, que o homem nem é de luxos. Ámen, bando de crentes, que a justiça ainda não disse de sua justiça.

Mas, estava na diferença entre monarquia e república, entre a direita e a esquerda, não necessariamente por esta ordem, nem respectivamente, afinal, já li que o ideal monárquico tem colhido adeptos dos mais estranhos quadrantes (a sério?), e há monárquicos convictos (ou assim-assim) em "cargos políticos de topo" na nossa república. Ninguém pode servir a dois senhores, mas, figurativamente por figurativamente, talvez se possa servir a duas senhoras. E eu gosto da Cecília Meireles. Mais do que gosto de Paulo Portas.

A nossa miserável sorte é que, da esquerda à direita, a melhor nata da política nacional, passando, ainda, pela banca e pela fina flor da advocacia, parece ter sempre uma mancha de carácter. E, também por cá, caminhamos para um extremar de posições que inquinam qualquer tentativa de discussão séria. Quando o que mais precisávamos – na hora de apontar a tal bazuca – era de um governo rigorosamente alinhado com o interesse público e de uma oposição atenta e competente no seu dever de intervenção política e de escrutínio disso a que chamam de acção governativa, entretemo-nos em lutas na lama.

E isto tudo a propósito da notícia da não recondução no cargo do presidente do Tribunal de Contas, no seguimento do parecer daquele órgão sobre as alterações à lei contratação pública. Não é assim que é dito, mas é o que parece. Tendo em conta o que já fomos capazes de esbanjar, para não usar piores termos, e os maus exemplos que vão enchendo páginas de notícias sem que nada de substancial mude, as preocupações de quem vê nisto uma ameaça de "assalto aos fundos europeus" podem não estar alienadas da realidade. Infelizmente. Entre tralhas que guardo, algumas são revistas que, por este ou aquele motivo, insisto em manter nas gavetas. Ou é a cor, ou o cheiro, ou o crepitar das folhas, ou uma memória que me interrompeu. Ou a indignação que sobra quando se vê do que alguns são capazes, sobre os escombros da vida dos outros. Sim, num país em que houve gente a usar a solidariedade e a generosidade que embalaram, em lágrimas, a tragédia de Pedrogão, para recuperar barracos há anos em ruínas, falsificando moradas com o maior despudor, todos os cuidados são poucos, no que toca à gestão do dinheiro que há sempre quem julgue que cai do céu. Cairá para alguns, de facto.

E, já que estou nisto, António Barreto falava, ontem, no PÚBLICO, sobre "corrupção e legitimidade democrática", e, aí, ia dizendo que "os portugueses são complacentes com a corrupção, mesmo quando não a praticam". Estou de acordo. Noutras coisas, já concordo menos, nomeadamente, que seja "perfeitamente possível que uma determinada ditadura tenha menos corrupção do que uma democracia", a não ser no âmbito de um exercício teórico, que foi o que ali se fez. E da lista de coisas que fazem com que o nosso país seja particularmente corrupto, elejo a ineficácia da justiça. A estrondosa ineficácia da justiça, que permite a sensação de prazenteira impunidade aos maiores prevaricadores.


De resto, foi um dia novo normal, como os últimos. Excepto que já me vesti de Outono. Disse que gosto das mudanças de estação e que até já me reconciliei com o Verão, mas podia viver um ano inteiro de outonos, em serenos sobressaltos, como no poema de António Gedeão, de quem me lembrei, não sei se por ser também dia dos professores, ou pelas aves que gritam, à minha janela, sobre uma tela perfeita de nuvens cinzentas. Como aquela pedra, ali.

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.