domingo, 11 de outubro de 2020

O Estado são eles.

 

Ninguém sai bem nos retratos da tomada de posse relâmpago do novo presidente do Tribunal de Contas, e também tenho qualquer coisa a dizer sobre o assunto: António Costa pode jurar a pés juntos que não quis calar vozes críticas e incómodas, com a mesma frescura saloia com que fingiu apoiar o presidente do Benfica, como adepto e não como primeiro-ministro, que ninguém acredita na mesma; Marcelo Rebelo de Sousa pode garantir nunca ter tido dúvidas quanto à limitação de mandatos e, portanto, quanto à substituição de Vítor Caldeira, que já toda a gente percebeu por que sentiu, entretanto, necessidade de se multiplicar em explicações; e Rui Rio, bom, Rui Rio continua amarrado a uma estratégia de não se deve bater no ceguinho, o que seria, não contem com ele para política do bota-abaixo, e o ceguinho agradece e lá vai aproveitando a boa-vontade dos outros para melhor impor a sua.

Como duvido bastante da ingenuidade que não abunda nos corredores e nos bastidores da política, parece-me que isto está mesmo tudo ligado, que é como quem diz, ora agora mando eu com a vossa bênção e, quando mandarem vossas excelências, corro a cobrar o dízimo, ou o que lhe queiram chamar desde que não me estraguem o pote.

E podia falar disto tudo de uma forma mais séria, mas, já não há paciência.

Podemos atirar as culpas para esquerda, para os comunistas, para os socialistas, para os discípulos de Sócrates – e saberá deus, se existir, o que me enerva a retórica do “inocente até prova em contrário” aplicada àquele senhor –, mas, se Portugal continua como a pocilga privada e de luxo de uns quantos é porque esses quantos se espalham como um cancro por todos os quadrantes políticos, onde se jura combater, enquanto oposição, o que nunca se deixa por fazer enquanto governo; em estado puro ou em coligações mais à medida dos partidos do que do país. É o agarrem-me se não eu faço ou não faço, dependendo do que mais me convier quando chegar a minha vez. Não sei bem como é que quebramos o ciclo, mas não há-de ser rosnando uns contra os outros, sim, nós somos maus, mas vocês são muito piores. E há um certo elogio a uma certa direita a que acho sempre uma certa graça.

Faz falta, no entanto, uma oposição séria. E, nessa oposição, uma direita não maledicente – como Rio não quer, de maneira nenhuma, cruz credo – mas que seja enérgica, crítica, responsável, que se imponha como alternativa decente e não como adoradora de protótipos fascistas. Se a extrama-esquerda anda obcecada com o politicamente correcto e com as críticas a Trump, Bolsanaro e os cachorrinhos de ambos, mais a coelhinha Acácia do outro, a extrema-direita anda fascinada com o atropelo às regras que sustentam a civilidade. De repente, no combate político, é aceitável usar de todos os insultos, de todas as ofensas, de todas as mentiras, de todas provocações escabrosas para chegar ao poder. E, se tudo isso não bastar, é aceitável que um presidente incite à violência entre os seus concidadãos. Afinal, a democracia não é o nosso objectivo, não é? Aparentemente, a democracia não é o objectivo de nenhuma das partes, mas, os que defendem o método-trump, querem fazer os outros crer que têm uma visão mais clara, uma leitura mais avisada e mais objectiva dos factos do que aqueles que abominam tudo o que Trump representa. É nisto que estamos.

Entretanto, estive a ver as 20 fotografias da semana do The Guardian. Reacendeu-se o conflito Nagorno-Karabakh e há, por isso, mais uma guerra aberta a colher vítimas, a esmagar vidas. E sonhos. Pergunto-me como se pode sonhar rodeado de escombros e penso na minha própria insignificância. Alguma vez eu seria capaz de defender assim a minha casa? Alguma vez o meu filho encontraria esperança numa escola resgatada dos destroços pela vontade dos que recusam baixar os braços e desistir? Sei lá do que falo, quando falo de guerra...


Celestino Arce Lavin/Zuma/Rex/Shutterstock


Ahmad Al-Basha/AFP/Getty Image



Mas, sim, há que acreditar. Viver com algum sentido de humildade, consciente da ténue linha que separa a sorte do azar, a claridade do abismo. É esse equilíbrio que tento. Lembrar-me, e ao meu filho, que a dignidade do outro nunca pode ser menos do que a nossa, mesmo em cantos opostos do mundo, mesmo não dispondo da mesma liberdade, nem dos mesmos privilégios. E que todos temos o mesmo direito de sonhar e de lutar por uma vida melhor.