segunda-feira, 12 de outubro de 2020


 

Ignoro se vivemos outras vidas. Se vivemos, já fui de Roma. De outros sítios também, de muitos outros sítios, mas Roma tomou conta de mim desde a primeira vez que a vi. Tudo nela me assalta e me desperta, tudo nela me invoca. Já vivi a infâmia burlesca aclamada freneticamente na arena sangrenta do Coliseu. Já passeei pelos corredores empedernidos do Fórum Romano. Já percorri todos os extensos caminhos da Via Appia, afagando as pedras maciças e largas, e serão seguramente meus alguns dos ossos confiados piedosamente às entranhas da terra, no coração das catacumbas sob o solo, entre túneis labirínticos, lúgubres, que, de tempos a tempos, o competentíssimo guia relembra não podermos fotografar senão junto à memória. Espreito, então, as criptas escavadas na parede, a diferentes alturas e momentos, talhadas pelo punho do tempo ou do homem, à medida, algumas adornadas de símbolos e gravuras e dos frescos que ainda resistem na companhia dos mortos que veneram e ainda guardam, entre santos, e mártires, e pontífices devotos. Sobressaltam-me os ruídos metálicos, os rugidos enrouquecidos que sobem de tom sobre o eco do silêncio que se impõe, subitamente, como um espírito que se houvesse materializado entre paredes e túmulos, para desassossego dos vivos.

A cidade é suja, sim, algo caótica e, heresia das heresias, os italianos, em geral, não são tão acolhedores como se diz, e Roma não é excepção. A excepção são os italianos da belíssima Toscana, e Florença é simplesmente magnífica. Mas, Roma entranhou-se-me na pele. Cumpro a penitência com irrepreensível deleite. Basta-me a imponência das ruas, as rugas do tempo riscado a cada esquina a que me rendo sem queixume, o burburinho da História narrada sobre as pedras, o cheiro dos séculos passados que me transporta à dimensão imperial da época, fundindo-me em memórias guardadas como relíquias. A cada regresso, deixo por lá um pedaço de mim. É um abuso dizê-lo assim, a cada regresso, porque, na vida que vivo e recordo, só a visitei duas vezes. Mas eu é que sei. Dos pedaços de que me faço.