sábado, 17 de outubro de 2020

A vida à beira do abismo

 

As imagens que tantas vezes vemos de vidas desfeitas pela catástrofe – como a que há três anos transformou num inferno uma parte do país que ainda sangra – parecem-nos, à maioria de nós, creio, demasiado distante. Podemos comovermo-nos genuinamente com o sofrimento atroz de quem perde mais do que deveria ser permitido, se de permissão se tratasse, mover montanhas para ajudarmos no que nos for possível, mas, quem não vive na pele essa tragédia, verá sempre com algum distanciamento o que de mais terrível acontece aos outros. Não por falta de empatia, não por despudor, não por indiferença, não por ignomínia – mesmo sabendo que existe gente capaz de tudo isso –, mas por um certo entorpecimento emocional, subconsciente, até, sem o qual a vida se tornaria demasiado insuportável. Por não podermos acudir a todas as agruras. Por nem todos sermos capazes de abdicar do que temos – muito ou pouco – em função dos outros, dos que mais precisam e que, tantas vezes, apenas por acaso não estão no nosso lugar. Sei que parece o mais vazio dos chavões, mas tenho uma profunda admiração por quem é capaz de largar tudo e atirar-se de cabeça numa viagem aos confins da miséria humana para lamber feridas, dar colo, cuidar, tratar, amar, ajudar como pode os mais esquecidos dos mais esquecidos, como fazem alguns médicos, enfermeiros, professores, voluntários de estas e outras áreas, preocupados apenas em ajudar, em dar a mão.

Esta pandemia, que muitos ainda acham que é um capricho de massas em debandada histérica, se alguma coisa deixar de bom, será a de nos lembrar (não sei por quanto tempo depois de a vencermos – e vencê-la-emos, como já vencemos outras) como o nosso pequeno mundo vale bastante menos do que pensávamos; do que pensamos. As notícias que continuam a chegar sobre pessoas que, até Março, se sustentavam sem sobressaltos – pagar a renda, usar o seu automóvel, pagar a escola privada dos filhos, se assim o entendessem, programar férias, almoços, jantares, etc – e, de repente, se vêem obrigados a pedir ajuda a instituições de solidariedade, deixam uma sensação de vulnerabilidade bastante difícil de racionalizar. E não se trata de desvalorizar a pobreza sistémica que já nos devia envergonhar a todos antes de Março. Até aí, já Portugal tinha (não teve sempre?) um nível de pobreza insuportável que muitos de nós – onde me incluo – vão tentando amenizar, pelo menos em consciência, com a participação em campanhas de auxílio mais ou menos conhecidas. Do “Banco Alimentar” a outras iniciativas mais modestas, mas que fazem a diferença nos bairros mais pobres de que, cada um de nós, estará mais perto. Mas, agora, até quem tinha vidas mais ou menos organizadas – tal como aqueles a quem a desgraça bateu à porta, em diferentes “Pedrogãos”, aqui ou por esse mundo fora – se vê atirado para um abismo de onde não sabe como voltar. Podemos pensar como é possível, por que não tiveram a prudência de poupar em tempos de bonança, como a formiga da fábula de Esopo? Excepto que a vida não é uma fábula. E poucos terão imaginado a possibilidade de ficar sete meses impossibilitados de exercer a sua profissão. Há sectores de actividade que demorarão mais tempo a recuperar do que aquele de que as pessoas dispõem para sobreviver com o mínimo de dignidade.

Agora, que já nem os mais ingénuos acreditam no poder redentor da guerra que nos ia fazer a todos de bondade imaculada, que os pivots de televisão mais respeitados deixaram de nos ministrar sermões a diário (aleluia) e que a realidade voltou a lembrar-nos que continuamos a ser capazes do melhor e do pior e que isso não depende de sinais divinos na forma tentada nem de vírus nem de outras peçonhas, resta-nos a consciência da nossa fragilidade; e a de que não há tragédia nenhuma capaz de converter um imbecil convicto.


Entretanto, vá lá saber-se porquê, lembrei-me de ter ouvido ou lido qualquer coisa sobre este documentário. Não encontrei legendado em português (na verdade, não procurei muito), mas resolvi deixá-lo aqui assim mesmo.  Voltarei mais tarde, para corrigir, se for o caso.




E, ontem, comecei a ver o de David Attenborough, mas, estava tão cansada que não fui capaz de resistir e adormeci logo no início. Vou recuperá-lo hoje. Ouço-o sempre com imenso prazer, contagiada pela sua paixão pela Natureza e pela Vida.