segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Terrorismo

 

Sei que foi há pouco mais de três anos, porque o escrevi num texto, e fui procurá-lo. O meu filho, com 10 anos, na altura, perguntou-me se a A. era terrorista. A A. é uma amiga muçulmana. Portuguesa e muçulmana.

Nessa altura, lembrei-me de José Saramago, “um pessimista assumido, mas não inteiramente incondicional”, como continuo a vê-lo, além de ser um dos meus escritores: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais” disse, um dia, Saramago.

A pergunta do meu filho veio na sequência dos atentados em Barcelona. Como habitualmente, a associação entre terroristas e muçulmanos é imediata. Como é – ou devia ser – óbvio, nem todos os terroristas são muçulmanos e nem todos os muçulmanos são terroristas. Foi por aí que comecei a tentar explicar-lhe o que não tem explicação. A não ser pelo ódio. E, esse, infelizmente ou felizmente, não escolhe idades, nem cores, nem credos, nem géneros. Mas escolhe uma raça: a nossa. A mais inteligente de todas e a que pode ser mais estúpida, também. Foi por isso que, naquele momento, também me lembrei da cegueira branca que Saramago ensaiou num dos mais belos e mais terríveis livros sobre as entranhas sombrias da nossa alma. Mesmo a mais pura. Do que seremos capazes, se nos virmos ameaçados na existência, a nossa, tal como a conhecemos?

Acredito que o facto de ter vivido num país muçulmano – embora relativamente liberal, para dizê-lo assim – me faça ser mais prudente e me reserve de não embarcar na teoria de que o Islão é uma religião de terror. Não por medo, mas porque, de facto, também conheci o outro lado. Um lado de que não comungo, que muitas vezes não entendo e de que continuo a não gostar, mas que está bastante longe de incitar ao terror e à morte dos infiéis. Todas as religiões têm o seu lado obscuro, à mercê da usurpação por fanáticos que pretendem apenas impor a sua vontade. Pela força, pelo medo, pela morte. Já tivemos a Inquisição. Nos EUA, neste preciso momento, há um bando de terroristas brancos, eventualmente tementes a um deus (um qualquer, suponho que para alguns propósitos seja totalmente indiferente), armados até aos dentes, às ordens do seu presidente – stand back and stand by, que ninguém esqueça, porque dia 3 de Novembro está aí à porta – e, no entanto, há gente séria, às direitas e altamente democrática, sem vergonha de apoiar um homem como Donald Trump. Um visionário, que só ainda não foi agraciado com o Nobel da Paz, porque o mundo está sequestrado por pedófilos, malfeitores e conspiracionistas (até teria graça, se o caso fosse para piadas), como nos alerta essa organização impoluta e pacifista que é o QAnon.

Mas, há de facto uma linha que é urgente traçar. O acto hediondo da decapitação de Samuel Paty, o professor francês cujo “crime” foi ter mostrado aos seus alunos caricaturas de Maomé, deve ser condenado por todos, a começar pela própria comunidade islâmica. Não pode haver lugar para garantias de respeito pela liberdade religiosa, ou outra qualquer liberdade, quando essa liberdade é instrumentalizada para impor uma vontade pela força e pela morte crua. E também não pode haver receio de chamar terrorista a um terrorista só porque esse terrorista é muçulmano, é cigano, é negro ou é branco, é mulher ou homem ou nenhum dos dois, azul às pintinhas, ou o que mais lhe aprouver. Não é a minha liberdade acaba onde a do outro começa: é a liberdade não poder ser um livre-trânsito para compreender e aceitar quem a utiliza para instalar, pela violência extrema e fútil, a sua agenda. Não sei qual é a melhor maneira de fazer isto, mas sei que estamos a perder a batalha. Nós, os que acreditamos nos valores democráticos e no Estado livre, igual, fraterno e laico. Em França e fora de França.

 

Naquela altura, há três anos, pela primeira vez, tentei – tentámos, o pai e eu – explicar ao meu filho a diferença entre terrorismo e religião; concretamente, entre terrorismo e Islão. E que a A. não é terrorista por ser muçulmana, evidentemente. Não muito tempo depois, levámo-lo a esse país onde vivemos, ainda ele não era vivo, como diz o próprio sobre o tempo antes do seu nascimento. Fizemos uma viagem maravilhosa. Abraçamos os amigos que ainda lá temos e, a esta distância, foi a melhor decisão que tomámos. Não sei quando voltaremos a sair, a correr mundo. Não sabemos o que teremos deixado de fazer por muito, muito tempo. Tentamos não perder demasiado. Não perder o que realmente importa. Ensinar-lhe, todos os dias, que, apesar de não compreendermos as opções dos outros, de não partilharmos da mesma opinião muitas vezes, não somos necessariamente inimigos. Mas ensiná-lo, também, que respeitar não significa submetermo-nos a ou abdicarmos de nós próprios, dos nossos hábitos, costumes ou crenças e muito menos significa viver no medo, embora, o medo faça parte da nossa vida. Nunca como hoje. E, isto, eu também já tinha escrito, pensando que não viveria outro pior

E que, nunca, nunca mesmo, podemos impor a nossa vontade pela intimidação bruta e criminosa. Mesmo que a nossa vontade parece a mais democrática das vontades.

 

Saramago (por acaso foi a avó de Saramago) também disse, O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer

Por falar em beleza, e em esperança, vi o documentário de David Attenborough. Se eu mandasse, como se diz, passava-o em todas as escolas. Pelo menos, em todas as escolas.