Ainda me sinto enojada com a notícia do menino de nove anos, a quem colegas da escola agrediram tão barbaramente que resultou na amputação de dois dedos da mão.
É
possível que a violência obscena que grassa nas redes, mais do que
impunemente, exaltada por turbas de milhares, milhões, de seguidores frementes
de raiva não tenha qualquer influência neste crescendo de horrores – violações
em grupo de adolescentes por adolescentes, publicadas no TikTok; agressões
filmadas e partilhadas como troféus; a agressão convertida em entretenimento –,
que sempre houve velhos do restelo contra o avançar do mundo, da rádio à
internet, e que a maldade intrínseca medra sozinha. É possível, mas não
acredito.
Se
é verdade que a natureza humana é complexa e sombria de mil e uma maneiras, a
eleição de Donald Trump como presidente da (ainda?) nação mais poderosa do
mundo democrático, a sua aceitação como símbolo de poder e mudança elevada, agora, à
idolatria, abriu a caixa de Pandora, animou-a, desencadeou um movimento de
subducção que ameaça a civilidade. Não é uma casualidade simplista, como se
Trump fosse, de repente, única e directamente responsável pela violência do
mundo, mas foi, evidentemente, um catalisador. A sua aprovação como chefe de Estado,
daqueles Estados, contribuiu para normalizar e legitimar a brutalidade,
primeiro, no discurso político, depois, na acção governativa. Trump ergueu um
exército de servos para quem o poder e o dinheiro estão acima de qualquer outro
valor, e qualquer meio é válido para lá chegar: insultar, perseguir, intimidar.
"Quiet, piggy" para calar uma jornalista, ou sugerir ameaças
de morte sobre um grupo de adversários políticos; atiçar, constantemente, a sua
matilha contra todos os que ousam desafiá-lo. Não é também isto que faz um ditador? Provavelmente, nem seria preciso perder tanto tempo a branquear os
ficheiros Epstein, deixando apenas o rastro de todos os inimigos: Donald Trump
tornou-se intocável.
Não
admira que Cristiano Ronaldo se tenha juntado à corte, acompanhando o dono
Mohammad bin Salman. Cristiano Ronaldo é um formidável atleta. Tem aquela
capacidade rara de converter críticas em metas, superando-se permanentemente;
depois disso, é outro homem deslumbrado por si próprio, pelo seu poder. A sua
associação a figuras autoritárias não é acidental, é o símbolo de um tempo onde
o poder pessoal, a riqueza e a impunidade parecem ter-se assumido como valores
supremos. E o poder desta gente sobrevive à custa dos que fazem da idolatria um
modo de vida. Como foi que disse Salvador Sobral, naquele concerto pelas vítimas
de Pedrogão Grande, na ressaca da vitória do festival Eurovisão? Pois. Com a
diferença, enorme diferença, de que Salvador Sobral estava – e suponho que
ainda – visceralmente consciente da farsa.
Devia
ser permitido adorar apenas os mortos.