terça-feira, 14 de maio de 2024

A primeira esposa mostra o apartamento para alugar. Um décimo e último andar, de amplos terraços e grinaldas de pedra maciça, ogivas perfeitas como arcos de catedral. Não sei a partir de quantos andares um prédio ameaça arranhar os céus, de um décimo andar não será, mas, dali, é espantosa a vista sobre a parte mais baixa do bairro antigo, sobre outros terraços de outros prédios.

Todos os edifícios residenciais crescem para um terraço comum, com estendais de roupa a secar ao sol e tapetes debruçados sobre os parapeitos de betão – e, uma vez por ano, altar de sacrifício onde os homens velhos vêm degolar o cordeiro de Deus para o desjejum (não haverá algo de profano nisto?)

O marido está na Europa, em lua-de-mel com a segunda esposa. São uma família relativamente liberal, ela pode tratar de alguns negócios na ausência dele, e algum nervo do meu rosto, do meu corpo, deve ter-me traído, para abrir um parêntesis de explicações copiosas à margem de uma conversa rasa sobre detalhes de arrendamento. Aceno que sim, esforço-me por sorrir, finjo que tudo me parece conforme, tão conforme como os tapetes pendurados nos murais brancos, um debrum ininterrupto de cores vivas como pássaros, e deixo de ouvi-la por momentos. O vento traz uma brisa de mar, que sei perto, mas talvez não passe de imaginação minha, como as sombras longas, rastejantes, na parede branca defronte.

No cimo da avenida, na torre da Grande Mesquita, anuncia-se a hora da oração; sempre aquele grito áspero que nunca deixará de me sobressaltar, a que nunca me habituarei, Allah hu Akbar, e não sei há quanto tempo estou ali sozinha, no terraço, sem rasto da primeira esposa. Vou encontrá-la na cozinha, de costas voltadas para a porta, ajoelhada sobre um tapete improvisado que me parece o mesmo lenço que ainda há pouco lhe cobria o cabelo negro, negro corvo, sedoso ao olhar, que só algumas destas mulheres podem orgulhosamente exibir. Toda a beleza no cabelo e nos olhos.

Volto ao terraço. Gosto das ruas que se vêem dali, dos olhares que não se cruzam e desses outros que carregam sonhos, da gente que sobe, apressada, a avenida larga, dos homens encostados aos muros baixos, encerrados nas suas histórias por contar, do cheiro a pão cozido a lenha que subiu comigo no elevador estreito de portas verde-musgo. Sei, desde o primeiro momento, que vou ficar.


domingo, 12 de maio de 2024




 

(Adoro-a)

Com todos os olhos em Gaza

Uma punição colectiva é, no mínimo, o que Benjamin Netanyahu está a executar em Gaza, sob o olhar complacente do superior Ocidente, porque os Direitos só são Humanos quando os humanos são dos nossos. Não sei se chama genocídio àquela orgia de morte e destruição, mas o nome não importa muito: é uma matança sem freio que ultrapassou há muito o direito à defesa.

No princípio, não parece muito diferente de arrombar apartamentos para agredir imigrantes se há (há?) imigrantes a aterrorizar a vizinhança. A diferença entre uma tragédia e uma estatística, diria não se sabe bem quem, mas com o mesmo cinismo com que acomodamos o terror aceitável: Israel está no seu direito de dizimar cidades inteiras, mandar evacuar populações inteiras, encurralar, matar tudo o que mexe, porque há um agente do Hamas em cada sopro que resista.

Israel foi alvo de um ataque hediondo, e é impossível imaginar o terror de ser agredido e feito refém por uma organização terrorista como o Hamas; Israel deve poder proteger-se, seria esmagada se não o fizesse, e terá tanto de hipócrita como do mais intrinsecamente humano sentir mais empatia com a tragédia daqueles que nos são mais próximos – suponho que no modo de vida também –, mas a culpa ou a falta dela não são um detalhe geográfico, um pionés no mapa mundi, o Mundo tem de estar muito doente para assistir e aceitar a vingança como forma de justiça, só porque a vingança é dos nossos, é amiga. Não sou deste Mundo. Não é possível clamar contra a Rússia, gritar a Vladimir Putin que retire as suas patas assassinas da Ucrânia e continuar ao lado de Benjamin Netanyahu no seu ataque predador – denunciá-lo é o que tem a ver com a defesa dos “valores ocidentais”, não o contrário.


quinta-feira, 9 de maio de 2024


É a segunda vez que me encontro com esta relíquia.

Gosto especialmente do “Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a lua”, dos “brincos novos para a filha de Abraão”, “Avivar as chamas do Inferno, pôr um rabo ao Diabo e fazer vários concertos aos condenados”, Retocar o Purgatório e pôr-lhe almas novas”: será uma vez única em que uma nota de despesas quase quase se aproxima de um poema, erros ortográficos (ou não) à parte.

Uma delícia.



Ter-te-ei sonhado, a ti, o meu vício secreto, na voragem predatória do vazio que me apetece?


quarta-feira, 8 de maio de 2024

Mamã, ouve lá isto...




 


Gosto. Quem é a Iolanda?


terça-feira, 7 de maio de 2024





Dissolvente

Atravessar o túnel da Gare do Oriente, no parque das Nações, é desolador. Um corredor imenso ladeado por pequenas ilhas de cobertores gastos, dormitório improvisado para dezenas de pessoas sem outro tecto. Há imigrantes e portugueses, gente que não trabalha e gente que trabalha, há crianças e cães, pais, mães, pessoas sós, novos, velhos, numa amálgama de desesperança e abandono. E há a vergonha que se encolhe e se esconde sob as mantas, nas horas de maior movimento.

Não há nenhuma discussão séria possível de ser feita sobre “reparações históricas” sobre os escombros desta miséria. Ou sobre as condições em que acolhemos os imigrantes que procuram aqui um esboço de um projecto de vida. André Ventura cavalga sem pudor a agonia deste naufrágio, e ninguém se atreve a tirar-lhe a palavra e procurar compromissos, soluções. Há um caldo de cólera ostensivamente ignorado, e é estarrecedor, a quantidade de gente que acha aceitável a apologia da “justiça pelas próprias mãos”, mesmo sem saber-se ainda se foram aquelas pessoas as responsáveis pela tal "onda de assaltos" que se vive naquela zona do Porto. E sabendo-se, que justiça seria esta, pela calada da noite, encabeçada por grupos de encapuzados armados de bastões e raiva?



Tinha saudades disto.


Que bom, ter-te de volta, querida Gaffe.



sexta-feira, 3 de maio de 2024

Olive Kitteridge


Trágico, cómico, sombrio, (quase) alegre, obsessivo, depressivo, absurdo, sobre tudo, sobre nada. Frances McDormand é extraordinária, mas Frances McDormand é extraordinária; o que surpreende é haver tantos extraordinários: Olive Kitteridge seria outra coisa qualquer, enfadonha, sem aquele elenco. Lembrei-me do filme As Confissões de Schmidt, que jamais sobreviveria sem Jack Nicholson. Outro extraordinário.

Sim, este mundo também me baralha ainda; é o que torna tão urgente viver.