quarta-feira, 15 de novembro de 2017

"The Handmaid´s Tale": ficção ou possível realidade?

Acabei de ler esse (dizem que) profético romance da escritora canadiana Margaret Atwood. “The handmaid´s tale” (em português, O Diário de uma Serva, ou a História de uma Serva), escrito há, qualquer coisa como, 30 anos relata a história de uma Serva, que veste de vermelho, cuja identidade violentamente arrancada e descartável se traduz apenas por um “De”, de posse, seguido do nome próprio do seu dono e senhor, marcada como gado fértil para fins reprodutores das casas mais ricas.

Como não podia deixar de ser, a acção desenrola-se nessa América que alguns querem “great again” onde, a coberto de extremismos religiosos e falsas protecções da moral e dos bons costumes (seja lá o que isso for), a sociedade, em geral, passa a ser reprimida obedecendo a uma elite de duvidosas boas intenções, enquanto as mulheres, em particular, vêem decapitados os seus direitos mais básicos.

Nessa nova América de exacerbadas virtudes, as mulheres são divididas por “classes” ou “tipos”. Há as Martas, que vestem de verde e prestam apenas para os afazeres das casas senhoriais e para tratar do desejado bebé que a Serva de serviço há-de parir, se Deus quiser. As Servas, essas, servem para ser violadas em cerimónias inspiradas na Bíblia e na benevolência e submissão de Sarai, mulher de Abrão, que entrega ao marido a sua serva Hagar para que com ela se deite e com ela conceba um filho. Nesta América nova, imaculada e virtuosa, a falta de descendência é culpa das Esposas, como não, pelo que os machos têm a obrigação de copular com as Servas com o único propósito, claro está, de procriar e inverter a fatal tendência de diminuição da natalidade. Os teocráticos podiam, apenas, ter impedido as mulheres de trabalhar, mas, há 30 anos, não consta que o polaco Janusz Korwin-Mikke fizesse campanha pela supremacia masculina no Parlamento Europeu e era capaz de dar menos gozo.

As Esposas vestem de azul e expiam a sua culpa e incompetência suportando, entre outras coisas e deitadas de costas, o peso de parte do corpo da Serva entre as suas pernas enquanto o marido, sobre esta, se afadiga na sua tarefa bíblica e suprema. A Serva não pode abrir os olhos, só as pernas, durante o acto e o contacto entre ela e o senhor da casa é, por lei, estritamente restringido a essa solene formalidade.

O relato da autora é tão cru e violento como parece e, ao fim de algumas páginas, estou nauseada o suficiente para parar. Mas, entretanto, Donald Trump acaba de cumprir um ano de presidência dos EUA, ou será de Gileade?, janta alegremente com assassinos confessos e pede-lhes para cantar, cultiva e promove uma postura de arrogância e violência e, com excepção de alguns jornalistas, analistas políticos e alguma arraia-miúda, o mundo parece ter-se adaptado bem à mudança e, então, eu tenho uma curiosidade imensa em continuar.

As mulheres pobres, ou melhor, as mulheres dos homens pobres são, talvez, as menos infelizes. Afinal, gozam do direito de permanecer junto das suas famílias e, se se portarem da forma tida como decente, talvez não venham a ser enviadas para as colónias e envenenadas pelos resíduos tóxicos acumulados por décadas de todas as formas de pouca vergonha. Mas, sobretudo, não serão nunca disciplinadas e amestradas pelas Tias, nem obrigadas a rodar de casa em casa, a passar de mão em mão, até terem gerado e parido um número suficiente de filhos para sossegar as hostes até, finalmente, serem deixadas em alguma paz.

Ainda não consegui ver a série. Imagino que a reprodução visual do horror descrito por Margaret Atwood no seu livro não deixe ninguém indiferente. Muito menos, se esse alguém for mulher de corpo e alma e inteiramente livre. E, quando penso nisso, invade-me uma sensação viscosa, já que ninguém é, de facto, inteiramente livre. Como se a noção de liberdade pudesse ser moldada e modelada à urgência do tempo e das circunstâncias e o que hoje é abominável, amanhã possa vir a ser tolerado para depois de amanhã ser aceite como inevitável.

Esfrego os olhos energicamente e sigo em frente, afastando o nojo e o possível pânico. Afinal, é só um livro. Não é?