Acabei de ler esse (dizem que) profético romance da
escritora canadiana Margaret Atwood. “The handmaid´s tale” (em
português, O Diário de uma Serva, ou a História de uma Serva),
escrito há, qualquer coisa como, 30 anos relata a história de uma Serva, que
veste de vermelho, cuja identidade violentamente arrancada e descartável se
traduz apenas por um “De”, de posse, seguido do nome próprio do seu dono e
senhor, marcada como gado fértil para fins reprodutores das casas mais ricas.
Como não podia deixar de ser, a acção desenrola-se nessa
América que alguns querem “great again” onde, a coberto de
extremismos religiosos e falsas protecções da moral e dos bons costumes (seja
lá o que isso for), a sociedade, em geral, passa a ser reprimida obedecendo a
uma elite de duvidosas boas intenções, enquanto as mulheres, em particular,
vêem decapitados os seus direitos mais básicos.
Nessa nova América de exacerbadas virtudes, as mulheres
são divididas por “classes” ou “tipos”. Há as Martas, que vestem de verde e
prestam apenas para os afazeres das casas senhoriais e para tratar do desejado
bebé que a Serva de serviço há-de parir, se Deus quiser. As Servas, essas,
servem para ser violadas em cerimónias inspiradas na Bíblia e na benevolência e
submissão de Sarai, mulher de Abrão, que entrega ao marido a sua
serva Hagar para que com ela se deite e com ela conceba um filho.
Nesta América nova, imaculada e virtuosa, a falta de descendência é culpa das Esposas,
como não, pelo que os machos têm a obrigação de copular com as Servas com o
único propósito, claro está, de procriar e inverter a fatal tendência de
diminuição da natalidade. Os teocráticos podiam, apenas, ter impedido as
mulheres de trabalhar, mas, há 30 anos, não consta que o polaco Janusz
Korwin-Mikke fizesse campanha pela supremacia masculina no Parlamento
Europeu e era capaz de dar menos gozo.
As Esposas vestem de azul e expiam a sua culpa e
incompetência suportando, entre outras coisas e deitadas de costas, o peso de
parte do corpo da Serva entre as suas pernas enquanto o marido, sobre esta, se
afadiga na sua tarefa bíblica e suprema. A Serva não pode abrir os olhos, só as
pernas, durante o acto e o contacto entre ela e o senhor da casa é, por lei,
estritamente restringido a essa solene formalidade.
O relato da autora é tão cru e violento como parece e, ao
fim de algumas páginas, estou nauseada o suficiente para parar. Mas,
entretanto, Donald Trump acaba de cumprir um ano de presidência dos EUA, ou
será de Gileade?, janta alegremente com assassinos confessos e pede-lhes
para cantar, cultiva e promove uma postura de arrogância e violência e, com
excepção de alguns jornalistas, analistas políticos e alguma arraia-miúda, o
mundo parece ter-se adaptado bem à mudança e, então, eu tenho uma curiosidade
imensa em continuar.
As mulheres pobres, ou melhor, as mulheres dos homens
pobres são, talvez, as menos infelizes. Afinal, gozam do direito de permanecer
junto das suas famílias e, se se portarem da forma tida como decente, talvez
não venham a ser enviadas para as colónias e envenenadas pelos resíduos tóxicos
acumulados por décadas de todas as formas de pouca vergonha. Mas, sobretudo,
não serão nunca disciplinadas e amestradas pelas Tias, nem obrigadas a rodar
de casa em casa, a passar de mão em mão, até terem gerado e parido um número
suficiente de filhos para sossegar as hostes até, finalmente, serem deixadas em
alguma paz.
Ainda não consegui ver a série. Imagino que a reprodução
visual do horror descrito por Margaret Atwood no seu livro não deixe ninguém
indiferente. Muito menos, se esse alguém for mulher de corpo e alma e
inteiramente livre. E, quando penso nisso, invade-me uma sensação viscosa, já
que ninguém é, de facto, inteiramente livre. Como se a noção de liberdade
pudesse ser moldada e modelada à urgência do tempo e das circunstâncias e o que
hoje é abominável, amanhã possa vir a ser tolerado para depois de amanhã ser
aceite como inevitável.
Esfrego os olhos energicamente e sigo em frente, afastando o nojo e o possível pânico. Afinal, é só um livro. Não é?