sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

Conta-me que a professora de artes visuais diz que não há essa coisa de não saber desenhar. Que toda a gente sabe desenhar. Que o desenho mais não é do que a reprodução no papel da nossa interpretação daquilo que vemos, e que os outros é que poderão olhar de forma diferente para aquilo que desenhamos.

Rimo-nos as duas, com alívio. Pela falta de jeito de ambas. Da minha, principalmente, incapaz que sou de reproduzir entre traços e telas o que quer que veja, mesmo que o que vejo me consuma todos os sentidos.

 

A propósito da conversa, voltei a lembrar-me do homem do café. O que arrancava histórias aos restos enegrecidos que sobravam no fundo da chávena branca que ele tombava, antes, sobre o pires, enquanto eu observava, pasmada, como o pincel fino ia ganhando vida na sua mão. E como, com essa vida, erguia gente entre rabiscos marron escuro e compunha cenários improváveis, materializando nas folhas brancas do pequeno caderno de argolas um pedaço de mundo que, um momento antes, apenas ele era capaz de adivinhar. Como assim, não há isso de não saber desenhar?

Não é que não perceba a outra arte, a da interpretação. Se é que se lhe pode chamar arte. Acho que é o me faz pasmar, também, sob um tecto pintado, uma catedral, um mosteiro encantado sobre uma ilha rochosa, um arco em ogiva perfeita, uma harmonia de cores, um desassossego de traços, a imponência de uma escultura, o verde dos prados a perder de vista, os gessos pintados, a capela de Miguel Ângelo, toda ela, o seu Juízo Final, e todos os versos de Gedeão, do vinho, espuma e fermento, ao contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, das bebedeiras de azul à cisão do átomo, uma explosão de vontades entre toques de alquimia.

 

E a propósito de talentos, um dia destes parei no The Voice e deixei-me ficar por lá, uns momentos. Normalmente, presto pouca atenção a programas televisivos da categoria reality-qualquer coisa. Por nenhum motivo especial, a não ser que não aprecio o género e não suporto ver gente a ser humilhada mesmo se a favor de todas as vontades, inclusive a sua. E, por decisão própria, excluo da categoria de programas aquelas coisas tipo Big Brother e as que misturam amores de agricultores mais as mães e outros apensos, os respectivos casamentos e outras salgalhadas do género – serão raros momentos de qualidade televisiva e vasto interesse social, e eu serei qualquer outra coisa esquisita que me queiram chamar, se for necessário fazer alguma justiça ao assunto. Adiante. No The Voice. Havia uma espécie de compilação de melhores momentos, não sei bem, não cheguei a confirmar. Fiquei só a ouvir. A qualidade de alguma gente que por ali aparece, sujeita à avaliação de uma outra gente que, por vezes, se deve contorcer na cadeira, juro, entre o espanto e o embaraço!

A dada altura, alguém cantou Pedro Abrunhosa, “Eu não sei quem te perdeu”. Eu não sei se há quem consiga ouvir o Pedro cantar aquilo sem uma ameaça de arrebatamento; eu não consigo. Mesmo sabendo que o Pedro não canta e, seguramente, não encanta por aí além. Pouco importa. Se fechar os olhos e me deixar guiar, posso render-me àquele abismo, despedaçar-me, ser dona do Céu. Do Inferno, também.

  


Entretanto, ouvi qualquer coisa sobre o Orçamento. E birras infantis, descomunais. E sobre as ondas na Nazaré e uma multidão ávida de pretextos para resgatar o que nos vai sobrando de vida. A desfaçatez desta gente! Por que não terão comprado, antes, um bilhete para ir a Portimão, assistir ao Grande Prémio de Fórmula 1? Além de parvos, pobres. Fossem, ao menos, inteligentes e ouvissem o que diz o Governo e o senhor Presidente da República, mais as sábias orientações para os próximos dias. Não se pode transitar entre concelhos e ponto. A menos que se tenha bilhetes para o teatro, que se seja turista estrangeiro em trânsito para o hotel, que se leve as crianças à escola e os pais ao centro de dia, que se vá trabalhar, sob compromisso de honra, entregar os filhos ao outro progenitor, regressar a casa se se esteve longe e se se esteve perto também. Enfim, mais ou menos tudo que não implique uma visita aos cemitérios para honrar os nossos mortos. Não deve ser difícil. Afinal, já (quase?) nos habituámos a ver morrer sozinhos aqueles que mais amamos, sem tempo nem lugar a despedidas; tudo a bem de voltar a ver ficar tudo bem.

 

E em França, o horror voltou a cobrar a sua vingança. Mais morte e outra decapitação, às mãos de outro louco prenhe de ódio. Nice volta a ser palco da barbárie, poucos dias depois de Paris e do assassínio do professor Samuel Paty. Poucos dias antes, eventualmente, de um outro qualquer acto tresloucado, demoníaco. E nada disto faz sentido.

Por falar em Mal, aproxima-se o dia das eleições presidenciais nos EUA. A Besta pode assumir várias formas, é preciso não esquecer. Estamos, todos!, sob ameaça e tem pouco a ver com a pandemia. Ainda assim, sobra-me pouca paciência para os idiotas da liberdade de não usar máscara porque sim, mais os não-sei-quê pela verdade e os especialistas paridos em série e em directo em todos os meios de comunicação social. A sério? Quando tudo arde à nossa volta?


Vou voltar ao café. E ao riso despreocupado, por momentos. Menos do que demora o beijo da canção, enquanto aproveito para abraçar parte do meu tempo, também.