terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Acabei de ler “O Infinito num Junco”. Finalmente. Tenho demorado mais do que o habitual, a terminar as minhas leituras, em aparente contraciclo com a disponibilidade de tempo que parecemos ter agora. Não importa.

Arrependi-me de não ter comprado o livro na sua versão original. Não posso ler em muitos idiomas diferentes do Português, mas posso ler em alguns, pouquíssimos; entre eles, o Espanhol. E arrependi-me porque, por vezes, quando leio um romance traduzido, assalta-me a dúvida de saber se não terei sido vítima de um embuste. Se aquele pedaço de texto em que mergulho despida e me desfaço foi escrito em carne viva como eu quando o leio, ou há uma espécie de logro por parte de quem o traduziu. Ou, ao contrário, se a tradução, de tão competente nas suas regras semânticas, desfez o feitiço, rompeu o encantamento e me livrou do sobressalto, contra a minha vontade, e nunca chegarei a saber da paixão que queima e alimenta a inquietação de quem escreve.

O Português é um dos meus idiomas preferidos. Dos mais belos que já ouvi, e não é por ser a minha língua materna. Dito assim, parece um pouco arrojado – petulante, até – porque não conheço assim tantos idiomas. Mas, gosto do nosso. Gosto da sonoridade suave e perfumada que percorre a pele quando falamos de amor; do sussurrar denso dos segredos que se dizem ao ouvido, arrastando palavras num articulado lento e sem alarme, com a elegância que outras línguas não permitem. Mesmo quando esses segredos se murmuram em absoluto silêncio, apenas pelo punho de quem se atreve.

Tenho um amigo espanhol a quem gosto de irritar – principalmente, porque ele deixa – insistindo em lembrar-lhe que o espanhol é uma língua foneticamente pobre. Não tem os nossos ditongos, claro, mas também não tem o tom rastejado do , nem o gorgolejado do jota, trocado pelo arranhado do erre, e, este, mais ribombado ainda. O e o erre não vão muito bem juntos, palavra é, ali, coisa impronunciável, um brinco pode servir a brincar, mas nunca à exuberância de um adorno adorado na cobiça, e os pronomes antes dos verbos martelam o ar com impaciência, sem a sensualidade do português que se fala no Brasil.

O meu amigo irritado costuma responder-me que, se o seu idioma é o que eu digo dele, será porque se basta assim mesmo, não necessita de mais. E, então, aposto tudo na tortura. Aponto-lhe a sensaboria. O horror de tudo poder dizer sem (ab)usar das oscilações de humor das nossas vogais, que o Espanhol ignora. O mesmo tom adormecente em todas as sílabas. A mesma nota sem ensaiar a elegância arrojada do timbre. Um quadro pintado sem o entardecer das cores; as páginas de um livro resistindo ao tempo, sem o amarelecimento dos séculos, num pasmo imaculado.

Parte disto, vem também a propósito de outras leituras em que esbarro de vez em quando. Às vezes, quase palestras, às vezes, quase resmungos (muitas vezes, inconsequentes), sobre a forma como, supostamente, se deve escrever. Bem. Genuinamente. Por isso entendendo-se não usar de ambiguidades, não ceder aos caprichos da ironia, não usar de musicalidades, credo!, mantendo as palavras despidas de tudo o que não seja essencial. Conselho inteligente e avisado, que, pessoalmente, transgrido sempre que posso e muito menos vezes do que me apetecia, porque me falta a arte que assiste aos melhores. Já me basta o essencial das ciências exactas, das formulações matemáticas sem desobediência com que me entretenho todo o dia, sem margem para contra-exemplos não autorizados pelas leis, pelos teoremas, pelos corolários.

Ah, eu adoro o aprumo aturado do rigor científico. A falta de ambiguidade implacável do amarelo-canário do iodeto de chumbo e a certeza de que, por cada acção, há uma reacção, tão capaz de embalar a Terra na sua órbita como de fazer um avião descolar, e, ainda assim, há em tudo isto um pequeno feitiço, uma melodia capaz de arrebatar o mais empedernido dos essenciais. E, se tanto aprecio a ausência e o silêncio, não aprecio menos a palavra escrita. Por mais impostora que possa parecer aos ignorantes do seu sentido. É esse, aliás, o ardil perfeito para fazê-la chegar, intacta, ao seu exacto destino, porque – lembrava, há dias, alguém de quem aprendi a gostar – também há quem ache ter a certeza de nós pelo que escrevemos, ou que todos os que escrevem o fazem com o mesmo propósito. A melhor literatura está cheia de palavras impostoras. Eu também tenho um "vício de palavras", também sou capaz de ouvir o "sussurro dos álamos" nos seus "cochichos misteriosos", e o que seria de mim se não pudesse ouvir (d)escrevê-lo assim, recordá-lo assim.

E outra parte disto para dizer que "O Infinito num Junco" era tudo o que ameaçava ser, ao início: uma história de amor escrita sobre outras histórias, algumas também de amor, umas que eu já conhecia e outras que fiquei a conhecer, maravilhosamente guiada pela mão de alguém capaz de armadilhar palavras, livrando-as da secura do essencial. 

É verdade, posso ter sido ludibriada pela arte de traduzir e pela beleza da língua portuguesa, razão pela qual as duas novas aquisições a juntar à pilha que não pára de crescer junto à minha cabeceira, são na língua original. Nos últimos meses, tenho vindo a comprar livros (ainda mais) compulsivamente, por motivos que talvez venha a perceber melhor, se fizer falta, depois de passado o desastre. O presente e o que se adivinha.