Era preciso silêncio para falar de liberdade de expressão. Mas o silêncio é um bem escasso. Para lá de essencial. Tenho-o visto tão maltratado, tão abusado, que já me irritam alguns dos elogios que vejo inventariarem-se tão frivolamente à volta da sua essência. Como se só eu fosse capaz de o apreciar devidamente, como se só eu fosse capaz de lhe apontar os bajuladores. Os impostores. E como se só eu fosse capaz de distinguir uns de outros.
É um tema que me “atormenta”,
e cada vez mais, o da liberdade de expressão. Onde pára, a dita liberdade?
Ou não pára? Toda a gente deve gozar de um direito legítimo, inviolável, de
defender aquilo em que acredita, mas, onde fica a fronteira entre a liberdade
de expressão e o insulto, a ciência e a crença, a realidade e a ficção, a
verdade e a mentira, mesmo que a verdade seja, às vezes, coisa de
difícil definição? Até onde vai a liberdade de ofender? Ou não deve haver
entraves – a não ser a do pudor próprio – a essa liberdade de ofender o Outro,
na sua diferença, seja lá o que isso for? Sobretudo, como é que se discute a
liberdade de expressão num tempo em que não nos conseguimos ouvir uns aos
outros, aos gritos que andamos, numa azáfama frenética de provar não sei bem o
quê, uns com horror ao rebanho, outros com horror ao pastor, muitos à procura
de um espaço impossível de construir porque a terra não pára de tremer. E
alguns empenhados, apenas, em instalar o caos, minando qualquer tentativa de
debate, porque o objectivo não é esse; nunca foi esse.
A liberdade de
expressão tem servido de respaldo a todas as forma de livre-pensar o que
quer que nos apeteça. O que é formidável, sem qualquer ironia. Viver amordaçado
é não viver. E há quem defenda que, sim, até o mais abjecto discurso deve ter
palco. Pelo menos assim saberemos (quase) sempre de que buraco podem vir a sair
os vermes. E que não pode haver solução
que passe pela censura dos conteúdos partilhados como pólvora. Associam a
censura, de qualquer tipo, a um calamitoso acto de condicionamento da nossa
expressão máxima de liberdade, receando que, a reboque e a coberto desses
limitações draconianas, acabemos, afinal, amordaçados todos, e não creio
que o receio seja infundado, ou exagerado.
De vez em quando, as
liberdades de expressão soltam-se todas ao mesmo tempo, como demónios. Em dias recentes, a liberdade de expressão permitiu perambular – muitas vezes, foi
mesmo só isso – sobre as (des)virtudes de Marcelino da Mata, de quem,
pessoalmente, ouvi falar duas vezes, sou assim de ignorante: a primeira não é
para aqui chamada (porque não é ao que venho), a segunda, na sequência do circo
que se instalou entre claques, como, aliás, se tem tornado normal em qualquer
discussão que podia ser séria, mas nunca chega a passar disso: uma disputa de claques. Agora,
passou a usar-se o termo trincheira.
De Marcelino da Mata
escreveram-se coisas que vale a pena ler e outras que serviram apenas para
alimentar o fogo. É impressionante perceber como, afinal, tanta gente conhecia
o homem, ou não fôssemos prodigiosos na arte de gerar especialistas da noite
para o dia, do dia para a noite, a qualquer hora, ininterruptamente.
De entre essas
coisas que servem apenas como jogadas, resultou uma petição a pedir a
deportação de Mamadou Ba. Parece mais elegante do que atirar-lhe com um labrego
“vai para a tua terra”, mas é igualmente grotesco. Fui espreitar: já leva mais de 31000 assinaturas. E, como parece que agora é preciso fazer-se sempre
uma declaração de interesses, não, não tenho particular simpatia por Mamadou Ba
nem pelos seus “excessos de linguagem”, mas, sim, acho que há disparates que se
toleram melhor a uns do que a outros. Pelo menos, enquanto não se fizerem paradas
de encapuzados à porta de todas as associações que por aí proliferam, e há
muitas atulhadas de gente igualmente parva nos seus excessos. Inclusive de
linguagem.
Entretanto – noutro
acesso de mimetismo esgrouviado (e perigoso) – parece que André Ventura se atirou
a um professor, partilhando, no seu Facebook, parte de uma aula – gravada
ilegalmente. Nessa aula, o professor refere que alguns neonazis passaram a
integrar o Chega e, aparentemente, a liberdade de expressão que o angélico André
exige para si e para os seus – com a qual comparou Jerónimo de Sousa ao avô
bêbado não se sabe de quem e acusou os lábios muito vermelhos da Marisa Matias
– esgota-se aí. Depois disso, ai de quem se atrever a usar da mesma para dizer
aquilo que nem chega bem a ser uma opinião, em desfavor deste nosso salvador da
pátria. Parece que também há um abaixo-assinado a pedir a punição do
professor e (uma espécie de) gente a ameaçar puni-lo com as próprias mãos.
Lindo.
Aqui ao lado, há oito
dias que a violência abre caminho principalmente nas ruas de Barcelona e de
Madrid. Uma amálgama de gente contra a prisão de um rapero catalão de
boas famílias e de maus fígados, dizem as más-línguas, eleito como símbolo da
liberdade de expressão em Espanha; como um mártir. Punir gente pelo que diz –
por mais estúpido ou por mais insultuoso que seja o que se diz – parece absurdo.
Como também é absurdo – e bastante miserável – que a luta pela liberdade de
expressão acabe por escolher heróis como o Pablo (Rivadulla Duro) Hásel.
Ou o nosso André Ventura. Mas é esse o risco que corremos ao tentar calá-los.
Temos, realmente, um problema. O outro é saber se podemos deixar nas mãos dos Zuckerberg
do mundo digital o policiamento do discurso público.
A minha relação com
a liberdade de expressão vale o que vale. Basta observar que mantenho público
um blogue que não admite comentários, embora haja ali um email e um formulário
de contacto, se alguém sentir uma necessidade incontrolável de me insultar, e
não seria a primeira vez. E quero ter a liberdade de chamar cretino a um
cretino, sempre que o cretino o mereça, de modo que, mesmo que fosse só por
isso, prezo bastante esse direito à liberdade de expressão.
Dizem os acérrimos defensores da liberdade de expressão que não se deve calar os imbecis, por mais imbecis. A justiça tratará de penalizar o que for penalizável (pelo menos, juridicamente) e a educação fará o resto. Não me sinto tão optimista. Aquela petição lá em cima há-de estar assinada por um ror de gente educadíssima, com toda a certeza. E o tempo da educação há muito que foi ultrapassado pelo tempo das redes sociais. É como tentar ensinar a controlar o fogo quando, de repente (na verdade, não tão de repente) já fomos engolidos pelo incêndio.