domingo, 7 de março de 2021

“(…) ahora, a los setenta y tantos, la Muerte es mi amiga. No es cierto que sea un esqueleto armado de una guadaña y com olor a podredumbre; es una mujer madura, elegante y amable perfumada a gardénias. Antes andaba rondando en mi vecindad, después en la casa de al lado y ahora está esperando pacientemente en mi jardin. A veces al passar frente a ella nos saludamos y ella me recuerda que debo aprovechar cada día como si fuera de los últimos.”

 

Há muito tempo que não lia nada de Isabel Allende. Li, há poucas semanas, o seu último livro. Na verdade, não chega bem a ser um livro. É uma conversa íntima, de letras gordas e páginas curtas, de pensamento fluido e humor cáustico, desconcertante, desfiando capítulos de uma vida cheia, uma idade generosa e límpida como a água fresca que jorra da fonte. Um recontar. “Sobre o amor impaciente, a vida longa e as bruxas boas”. Sobre generosidade. Sobre ser mulher; sobre a obrigação de se ser feminista. Creio que haverá alturas em que pensamos no "feminismo" como uma coisa um pouco esdrúxula. Principalmente no mundo ocidental. Ou serei só eu que o penso. Às vezes vejo-me perfeitamente como a Paula, a filha já morta de Isabel Allende, suspirando e revirando os olhos ao assunto, quando o assunto ainda lhe parecia uma coisa de somenos. Depois lembro-me, não há muito tempo, de um miúdo com idade para ser meu filho se ter atrevido a tocar-me indevidamente, propositadamente, aproveitando um pequeno momento de confusão. De como a seguir ao choque como uma chicotada (não deve haver uma única mulher no mundo que não a tenha sentido alguma vez), a primeira coisa que me ocorreu pensar foi, precisamente, na forma como estava vestida. É inacreditável como ainda posso, por um breve instante que seja, dar por mim aí. Lembro-me de pensar que até estava decente. Só depois veio o escândalo. E isto sou eu, do alto do meu privilégio de mulher ocidental, educada e culta. Às vezes. Longe, tão longe!, de todas as outras formas de violência aberrante, insuportável, que ainda se exerce sobre milhões de mulheres, sobre milhões de meninas, em todo o mundo. Aqui mesmo, num país onde a violência sobre mulheres, nomeadamente a violência doméstica, ainda se trata com uma boa dose de desmerecimento; quando não se trata pior. Portanto, sim, talvez haja uma certa obrigação de se ser feminista. Pelo menos, enquanto houver meninas vendidas como escravas num qualquer canto do mundo.

Lê-se numa tarde de chuva como a minha, o "Mulheres da Minha Alma". Entre três cafés, no colo de uma manta macia, por detrás da janela voltada para o mar. Aquele trecho lá em cima não é o mais importante do livro. E nem sequer estou próximo dos setenta y tantos. Como se a idade fosse a única distância que nos separa da morte. Mas, se viver inteira até lá, como desejo, quero olhá-la assim. À Morte.

 

Também li “Eva”, de Arturo Pérez-Reverte. Não fiquei fascinada. Um descritivo cheio de lugares-comuns, alguns demasiado previsíveis. Até a minha tão amada cidade de Tânger me pareceu mutilada, mesmo sabendo que a cidade que conheço agora não é a mesma que conheci há vinte anos, e que nenhuma das duas é aquela que se pretende retratada no livro. É bem possível, sim, que tenha sido um problema de idioma. Mas não gostei o suficiente para voltar a lê-lo, agora, em português, como faço às vezes com outros livros. 

Em contrapartida, continuo a adorar ler e reler Clarice Lispector.


Também me falta um café de rua. O resto da não-rotina, da velha, vou tolerando mais ou menos bem. Creio. Dou-me conta de que tenho transformado o tempo dedicado à compra de bens essenciais numa espécie de ritual; e, com isso, vou acumulando edições em papel da National Geographic. Mais do que o velho normal. Hoje trouxe a edição especial sobre Números Notáveis. Mas ainda não li a edição dedicada a Cleópatra; nem a d’ Os Primeiros Faraós; nem aquela outra, dedicada ao ano da nossa peste.

Entretanto, reparei que a Bertrand reabriu. Pelo menos, no meu Centro Comercial. Também me fazem falta as livrarias. Não sei se reabriram as livrarias de rua, não tenho andado muito na rua. Ainda assim, apercebo-me, não só do cansaço, mas do menosprezo. O desconfinamento está em curso, queiram ou não queiram António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. 

E, se não for pedir muito, deixem Os Maias em paz