Tropecei nesta notícia por acaso, quando o sempre atento Google assume que eu estou à procura de uma coisa de que não estou realmente à procura; mesmo que digam que a culpa é nossa, não é sempre, mas, sim, o título acabou por fazer o resto.
Na Holanda – a que, agora, chamamos Países Baixos – uma autora e tradutora branca, assim mesmo, branca, foi obrigada a recusar traduzir a obra de Amanda Gorman. Amanda Gorman é aquela magnífica jovem e poetisa negra que, na tomada de posse de Joe Biden, leu o poema da sua autoria “The Hill We Climb”. O momento foi bastante acarinhado, e aplaudido, e o talento de Amanda Gorman bastante elogiado.
E, afinal, qual é o
problema com a tradutora holandesa? Aparentemente, nenhum. Com excepção da cor
da pele; como parece que também já tinha acontecido com a dobragem da versão
portuguesa do filme “Soul”.
Não podemos fingir que vivemos no tal mundo igualitário que John Lennon imaginou, escreveu com a sua amada Yoko Ono, e, depois, cantou e converteu num quase hino à paz. Mas não sei se, à custa de tanto nos balizarmos, histericamente, nessa espécie de paz asseada, fingida – que só não é estéril porque acabará por gerar novos(velhos) monstros –, não acabaremos nós a embrionar um mundo pior. A preto e branco. Outra vez. É insuportável.
A notícia revela ainda que Marieke Lucas Rijneveld – a também tradutora que, afinal, não pode ser – se disse chocada com o tumulto que assunto gerou e que entende as pessoas que se sentiram magoadas com a sua escolha. Haja alguém que entenda alguma coisa desta insanidade. Porque é uma insanidade, se, à custa de uma tentativa de discriminação positiva, acabamos a cometer os mesmos erros.
Acho miserável alguém ser obrigado a desculpar-se por ser negro, como acho miserável alguém ser obrigada a desculpar-se por ser branco. Mesmo sabendo do abismo que pode existir entre as duas realidades no nosso maravilhoso mundo ocidental em suspenso, acho tudo isto bastante obtuso. No mínimo.
Salva-se a elegância de Amanda Gorman recitando o seu poema. Encontrei esta tradução no PÚBLICO. Exactamente como copiei. Feita por um homem, advogado, branco, aparentemente com idade para ser pai da miúda. Tudo errado, portanto. A Amanda que me perdoe.
“Quando amanhece nós
perguntamo-nos:
‘Nesta interminável
sombra, onde podemos luz achar?’
‘Esta perda que
carregamos, o mar que temos de cruzar’.
Nós afrontámos a
barriga da besta,
nós aprendemos que a
quietude não é sempre paz.
E que as normas e
noções do que é justo
nem sempre são
justiça.
E no entanto o
amanhecer é nosso num ápice,
de alguma forma
conseguimos. De alguma forma resistimos
e vimos uma nação
que não está quebrada, mas apenas inacabada.
Nós, os herdeiros de
um país e de um tempo
em que uma pequena
rapariga Negra descendente de escravos
e criada por uma mãe
solteira pode sonhar ser presidente
e logo ver-se a
declamar para um.
E, sim, estamos
longe de ser polidos, longe de ser impolutos,
e isso não significa
que estejamos a procurar formar uma união que seja perfeita.
Nós estamos a
procurar erguer uma união com propósito.
Formar um país
aberto a todas as culturas,
cores, caracteres e
condições humanas.
E assim nós erguemos
o olhar não para aquilo que nos separa,
mas para o que está
diante de nós. Nós vemos o fosso fechar,
por sabermos que
para colocar o nosso futuro em primeiro lugar
temos em primeiro
lugar de colocar de lado as nossas diferenças.
Nós abandonamos as
armas para darmos as mãos uns aos outros.
Nós não queremos
dano para ninguém mas harmonia para todos.
Deixemos o mundo, ao
menos, dizer que isto é verdade:
que mesmo quando
sofríamos, crescíamos;
que mesmo quando
doía, tínhamos esperança;
que mesmo quando nos
cansávamos, tentávamos;
que estaremos sempre
juntos na vitória,
não por nunca
voltarmos a sofrer derrota
mas por nunca
voltarmos a semear divisão.
As escrituras
dizem-nos para imaginarmos que ‘todos se sentem debaixo da sua própria vinha e
figueira e que ninguém os faça recear.’
Se quisermos estar à
altura do nosso tempo,
a vitória não estará
na lâmina da destruição
mas em todas as
pontes em construção.
Esta é a prometida
clareira,
a colina que nós
subimos se isso ousarmos,
porque ser
Americano
é mais do que um
orgulho que herdamos –
é o passado em que
mergulhamos e a forma como o reparamos.
Nós vimos uma força
que fragmentaria a nossa nação
em vez de a
partilhar,
que destruiria o
nosso país se adiasse a democracia.
E quase conseguiram.
Mas se a democracia
pode às vezes ser adiada,
não pode nunca ser
permanentemente derrotada.
Confiamos nesta
verdade, nesta fé
porque quando pomos
os olhos no futuro
o futuro põe os
olhos em nós.
Esta é a era da
justa redenção.
Receámos no início.
Não nos sentíamos
preparados para ser os herdeiros de tão aterradora hora
mas no seu seio
descobrimos o poder
de escrever um novo
capítulo, de nos oferecermos confiança e riso.
Assim, enquanto
outrora perguntávamos ‘como podemos vencer a catástrofe’,
agora dizemos: ‘como
pode a catástrofe alguma vez vencer-nos?’
Não vamos marchar de
regresso ao que foi, mas avançar para o que deve ser:
um país que está
ferido mas inteiro,
benevolente mas
audaz, forte e livre.
Nós não recuaremos
ou nos deteremos
ante a intimidação
porque sabemos que a nossa inacção
e inércia serão o
legado da próxima geração.
Os nossos erros
serão os seu encargos
mas uma coisa é
certa:
Se juntarmos
perdão com poder, e poder com rectidão,
então o amor
torna-se o nossa herança
e a mudança um
direito inato das nossas crianças.
Vamos pois deixar um
país melhor do que aquele que nos deixaram.
Com cada fôlego do
meu peito cinzelado a bronze,
nós transformaremos
este mundo ferido num mundo maravilhoso.
Ressurgiremos das
colinas douradas do Oeste,
ressurgiremos do
Noroeste varrido pelos ventos,
onde os nossos
antepassados começaram a revolução.
Ressurgiremos das
cidades à beira dos lagos dos estados do Midwest.
Ressurgiremos do Sul
banhado pelo sol.
Nós reconstruiremos,
reconciliaremos e recuperaremos todos os recantos conhecidos da nossa nação
e em cada canto que
chamamos nosso país, o nosso povo diverso e belo surgirá fustigado e belo.
Quando amanhecer,
nós deixaremos a sombra,
ardentes e sem medo.
Uma nova madrugada
floresce enquanto a libertamos.
Porque há sempre luz
se formos suficientemente bravos para a ver,
se formos
suficientemente bravos para o ser.”