sábado, 10 de abril de 2021

Ajustes de Contas



José Sócrates e a Operação Marquês acabadinha de implodir têm-me mais traumatizada do que supunha. Se me tivessem pedido para jurar teria jurado que Sócrates tinha sido preso dia 24 e não dia 21 de Novembro de 2014. A minha incapacidade crónica para prestar a atenção devida a datas importantes é um caso de psicanálise; que não pratico, mas se calhar devia. Em minha defesa, ou não, até para ditar a data de nascimento do meu filho preciso de uns segundos para fazer contas de cabeça: vá lá saber-se porquê, se não pensar, insisto em apontar 2008, quando o miúdo nasceu mesmo, mesmo a acabar 2006. O que vale é que ele já nem me liga, encolhe os ombros e revira-me os olhos; tenho sido capaz de educá-lo bem. De modo que, só para que conste, também disso José Sócrates foi falsamente acusado por mim, coitado, não foi nada preso no dia dos meus anos, afinal.

Entretanto, como se esperava, o juiz Ivo Rosa decidiu não levar José Sócrates a julgamento pelos crimes de corrupção de que o nosso ex-primeiro estava acusado. Não havia – nunca houve, e era sabido – as tais provas inabaláveis que sustentassem essas acusações. Havia a evidência de um nível de vida insuportável por rendimentos próprios conhecidos e a confissão descarada de um primeiro-ministro de Portugal usufruir, enquanto tal, de avultados e generosíssimos empréstimos do grande amigo Santos Silva. Quando o dinheiro não era do amigo, era da mãe, com quem o amigo também fazia negócios, e, insistindo meticulosamente na retórica da carochinha – coisa que se terá tornado mais suportável a partir do momento em que foi conhecido o nome do juiz de instrução –, seria apenas uma questão de tempo.

O meu lado emocional cospe as entranhas de indignação desmedida e vontade de me juntar ao coro dos que já decretaram a morte do tudo o que mexe e não mexe na Justiça e nos pilares do Estado de Direito. E, do pouco que ouvi – porque ainda vou ouvir as tais três horas, ou lá o que foi, da leitura da decisão instrutória: a coisa merece-o e, ontem, foi-me impossível – achei assombrosa a utilização de alguns termos, por parte do juiz Ivo Rosa, para classificar partes do despacho de acusação. Ou o Ministério Público é um antro de incompetência – e, mesmo assim, naquele contexto, dispensavam-se (alguns) adjectivos –, ou Ivo Rosa aproveitou a onda para mandar recados e ajustar contas antigas, o que é absolutamente espantoso.

Também acho admirável os que acusam de demagogos todos os que ousem suspeitar da conduta de Sócrates e companhia sem as tais provas irrefutáveis. “Toda a gente é inocente até prova em contrário”: é verdade; é vital; é inviolável, num Estado de Direito. E o tempo que a justiça demora a fazer-se, neste país, é um dos maiores atentados a esse Estado de Direito: os inocentes são, irremediavelmente, arrastados na lama, com a vida devassada e o nome mutilado para todo o sempre, e os culpados, na prática, nunca chegam bem a sê-lo porque os crimes de que são acusados, ora prescrevem, ora não há provas, ora há provas mas não são válidas, e, se nada do anterior se verifica, o culpado já terá falecido. Isto, claro, desde que o crime mereça o dinheiro que se gasta em advogados e recursos e adendas e etc. Dito isto, José Sócrates merecia um estado intermédio. Mesmo que Santos Silva fosse esse tal amigo abnegadíssimo, riquíssimo, generosíssimo, amorosíssimo, que há gente que jura a pés juntos que existe (eu não aceito nada dos meus amigos que não possa retribuir; mas isso sou eu, incivilizada), só com uma grande dose de ingenuidade é que se pode olhar para tudo aquilo com a candura do respeito pela presunção de inocência.

Ainda assim. Ainda assim, o juiz que José Sócrates tanto estima acusou-o de "venda de disponibilidade" e de "mercadejar com o ex-cargo de Primeiro-Ministro", e decidiu que Sócrates deve ser julgado por seis crimes, entre eles, três de branqueamento de capital. Afinal, o juiz Ivo Rosa também não acredita na teoria fofinha dos empréstimos…Quando acabar de o ouvir, talvez cá volte. 

E achei deplorável o espectáculo das motinhas em perseguição assanhada do ex-primeiro ministro a caminho do tribunal, só para que conste.