segunda-feira, 26 de abril de 2021

O Google devolve-me, como lembrete, imagens de há dois anos; andava eu pela Assembleia da República, e ela toda vestida de cravos. Fui revisitar as fotografias e, aproveitando o espírito saudosista, fui reler o que tinha escrito sobre o assunto e sobre o dia de ontem naquela altura. Transcrevo, porque ainda me revejo em tudo:

“Nunca deixo de me emocionar quando ouço o Hino Nacional; e acho que tem vindo a piorar. Não sei se porque estou mais velha ou mais piegas. Possivelmente, uma acumulação das duas. Sou uma cidadã do mundo algo reles, já que, ao contrário de outros que ouço às vezes, aquieta-me o regresso a Casa. Portugal tem inúmeros e desditosos vícios. Mas, também tem grandes virtudes. A maior de todas é a Liberdade que tomamos como garantida, inabalável, e que, há 45 anos, não existia. Como seria não poder ler o que queremos? Não poder falar sem medir as palavras? Não poder escrever, criticar, reflectir, discordar sem medo de ser perseguido, eventualmente, encarcerado? Não estarmos autorizados a pensar contra a corrente?

Não sou feita da mesma massa dessa gente que se levanta com ousadia desmedida e lúcida contra a opressão de regimes autoritários, sem medo de sofrer as consequências, empenhada em defender essa liberdade que se estende para lá do nosso conforto miudinho. É tão adequado e tranquilo vociferar contra tudo e contra todos, com razão ou sem ela, sem receio de desaparecer nas malhas do sistema político, perseguidos pela polícia, atirados para trás das grades pelo atrevimento de dizer "não". Por isso, sou grata aos que foram capazes de saber quem eram e, sobretudo, o que faziam exactamente ali, naquele 25 de Abril de 1974. É bom não esquecer.”

 

Há uns dias, o professor de Português do meu filho pediu aos alunos da turma que escrevessem uma história sobre o 25 de Abril. Mais ou menos. De preferência, uma história real; que perguntassem aos avôs, por exemplo. O meu filho pediu ao meu pai para lhe contar aquela história, como foi, afinal, quando o bisavô engoliu aquela folha de jornal, ou lá o que era, no dia em que a PIDE foi procurá-lo lá na fábrica?

O meu filho sabe a história de cor, porque já a ouviu dezenas de vezes. Mas, gosta de perguntar ao avô. Outra vez. E o meu pai gosta de lha contar. Eu gosto de os ver e ouvir, e lembrei-me disto a propósito do programa de ontem do Ricardo Araújo Pereira. 

Quando ouço gente reclamar sobre o clima ditatorial em que vivemos a pretexto da pandemia, não sei se ria se chore. Ou, então, os outros, os que anseiam por um novo Salazar. Embora reconheça que a liberdade de pensarmos contra-corrente ande bastante abalada, mas, também, muito à custa de confundir a liberdade de opinar com a liberdade de efabular. As duas estão muito bem, é preciso é não confundi-las.

Ontem, não acompanhei nada das celebrações do 25 de Abril. Ouvi falar do discurso do Presidente da República, de como tinha sido excelente, de como fora aplaudido por todas as bancadas menos uma, claro, uma aula de história, erudito, inteligente, um dos melhores discursos de Marcelo Rebelo de Sousa. Pois bem, fui ouvi-lo, ao fim do dia.

A minha relação com Marcelo-Presidente está mais ou menos ao nível daquelas relações conjugais desavindas, em que os cônjuges passam grande parte do tempo entre as zangas e o fazer as pazes, as últimas em tom cada vez mais morno e as primeiras cada vez mais azedas. Mas, quase sempre, o discurso do dia 25 de Abril é tempo de reconciliação. De modo que, sou suspeita para dizer que também eu gostei do discurso. Gosto quase sempre do discurso do dia 25 de Abril. O grande problema é que, provavelmente, não terá grandes consequências. Tudo o que ali se ouviu e se aplaudiu diluir-se-á rapidamente na inevitável chicana dos dias próximos, ainda antes de murcharem os belos cravos. E ouvir Rui Rio falar da disponibilidade que os partidos devem manifestar para fazer as reformas que o país precisa, invocar ambição e coragem, afirmar que o país está doente, ele, o homem do banho de ética que se deixou afogar numa aguinha de bidet infecta, é, no mínimo, deprimente.