quarta-feira, 5 de maio de 2021

Da Língua Portuguesa

em tempos (também) de censura.

“Pensemos o amor no seu jogo através do contentamento: as palavras uma por uma no bordado empolgante dos sentimentos e dos gestos. A mão sobre o papel traça com precisão as ideias nas cartas que, mais do que para o outro, escrevemos para nosso próprio alimento: o doce alimento da ternura, da invenção do passado ou o envenenamento da acusação e da vingança; elas próprias principais elementos da paixão na reconstrução do nosso corpo sempre pronto a ceder à emoção inventada, mas não falsa. – Não é falso se te escrevo:

«Repara, sequiosa é a faca do teu silêncio a revolver-se-me bem no interior do ventre… Cobre com os teus dedos os meus olhos a fim de eu ver ou não me veja, que te perco e não me odeio.»

Eis o ódio, outro principal elemento do amor. Amor cujo objecto nunca será em si a principal causa, mas apenas o motivo, o ponto de partida, jamais o único objectivo ou mesmo o fulcro, o outro.

E se não acredito em mim o amor como sentimento totalmente verdadeiro a não ser a partir da minha imperativa necessidade em inventá-lo (logo já ele é verdadeiro mas tu não), recuso-me a negá-lo no entanto pois na realidade existe, é em si mesmo: vício, urgência, precipício, enquanto tu serves apenas de motivação, de início, de peça envolvente em que te arrasto neste meu muito maior prazer em me sentir apaixonada do que em amar-te. Neste meu muito maior prazer em dizer que te amo do que na verdade em querer-te.

Não é falso, então, se te escrevo:

«Sei que te perdi e me afundo, me perco também dentro da minha total ausência de poder em que me queiras.»"

 

Novas Cartas Portuguesas

Maria Isabel Barreno

Maria Teresa Horta

Maria Velho da Costa