domingo, 9 de maio de 2021



Talvez levasse aquela música comigo. Se houvesse a tal catástrofe e eu ficasse completamente sozinha. Se pudesse levar apenas uma música, já que não poderia dispensar os livros. 

Não é a minha música preferida, aquela, porque creio não ser capaz de definir – ou, simplesmente, decidir – isso a que alguns chamam de coisas preferidas. Sou tantas coisas diferentes, que depende dos dias. Dos meus dias. Mas, em cada uma dessas coisas diferentes que sou, sou relativamente fácil de contentar. E só não levaria música clássica porque me esgoto quando ouço música clássica. Não sou sequer capaz de ler a ouvir música clássica. São amores inconciliáveis. E, se houvesse uma tal catástrofe, precisaria de mim inteira.

Estive vai não vai para ir ao cinema. Ver “O Pai”. Anthony Hopkins é um dos meus actores favoritos, independentemente dos dias. Não sei quantas vezes terei visto “O Silêncio dos Inocentes”. A última vez foi em Fevereiro passado. Anthony Hopkins é um monstro da representação, naquele filme. Não só naquele. Também gosto dele como James Stevens, o mordomo severo de “Os Despojos do Dia”, tão intransigentemente austero, inclusive nos afectos, sobretudo nos afectos, que deixa escapar até ser demasiado tarde o amor em que se consome pela senhorita Kenton; outra representação soberba, a de Emma Thompson.

Mas gosto de Hopkins sobretudo como Hannibal Lecter. Posso ser bastante obsessiva nas coisas de que gosto.

O meu lado obscuro, um nadinha psicopata (não sei se todos teremos um desses, mas eu sei que tenho; perfeitamente domado, creio, mas tenho), rende-se sempre à cena macabra da fuga de Hannibal Lecter da tal prisão de alta segurança: tudo naquela sequência é magnífico, do pormenor das algemas, ao Cristo crucificado; do transe de Lecter (ou de Hopkins?) à sinistra máscara de pele humana atrás da qual se esconde a besta.

Chama-se sempre a atenção para os escassos vinte e qualquer coisa minutos que dura, no total do filme, a presença física, presença-presença, de Dr. Lecter em “O Silêncio dos Inocentes”. Mas, alguém nota? Anthony Hopkins tornou Hannibal Lecter omnipresente. Tal como Joaquin Fenix imortalizou Arthur Fleck na pele de Joker. Não acho que possa ser ao contrário. 

Há vilões dignos de culto. Há personagens que clamam pelos actores certos. Pelas actrizes certas: não há Clarice Starling depois de Jodie Foster, a Rebecca Breeds que me perdoe; mesmo que eu não tenha sido capaz de passar do primeiro episódio.

Tudo isto a propósito da música. Ou de catástrofes. Ou de outra coisa qualquer que deixei escapar. 

Continuo incapaz de regressar ao cinema.

Se me perguntar amanhã, se calhar, escolho outra música. Não preferida.