quinta-feira, 1 de julho de 2021

Quem vai rir por último?

Há uma amiga com quem mantenho discussões animadas sobre os Berardos do nosso mundo empresarial, dos banqueiros aos gestores de topo, uns e outros assessorados com devoção devida, às vezes divina, pelos melhores dos melhores advogados, também eles de topo, passando – como não podia deixar de ser – pelo ex-primeiro-ministro Sócrates e os seus apóstolos.

Estamos de acordo em quase tudo, excepto, como é bom de ver, no quase. E é nesse quase que reside o essencial da coisa e dos casos de folhetim mexicano que foram desfilando, em datas memoráveis, pelas comissões de inquérito numa salinha singela do edifício da Assembleia da República Portuguesa.

Em relação a Joe Berardo. Diz a minha amiga que o empresário é menos um vigarista e mais um bode expiatório a quem a “elite” onde se enfiou por um suposto mérito próprio nunca terá perdoado a ausência flagrante de glamour. Joe Berardo expressa-se mal (expressar-se mal é um eufemismo benevolente, mas tal incapacidade não constitui um crime, é um facto), mistura, sem a elegância do savoir faire, duas línguas, salvo seja, e nenhuma delas é o francês, é daquelas almas desastradas a quem a consumição pode fazer resvalar para uma arrogância parda, ameaçadoramente parva mas sem intenção, um imbecil pode, afinal, não ser um imbecil, até pode chegar a comendador, e as comissões de inquérito são terreno ostensivamente hostil, com deputados e deputadas armados em pistoleiros sedentos de sangue. Enfim, o homem, se calhar, não é bem o trambiqueiro que parece e, mesmo que seja, não está sozinho. Quanto ao não estar sozinho, estamos totalmente de acordo.

A outra questão, realmente séria, da maior importância num Estado de Direito, como se diz, tem que ver com a “prova”. E, na falta dela, com a necessária e inviolável presunção de inocência. É um facto. Nisso, também estamos de acordo. Pelo menos, no sentido teórico da coisa. Acontece que, em Portugal, necessitaríamos de uma figura jurídica, ou lá o que fosse, de carácter intermédio. O que temos é uma violação grosseira de outro princípio, o da inteligência. Mínima. Quem é que acredita, por exemplo, que seja o amigo Santos Silva o grande corruptor daquilo tudo ou quase tudo que envolve a novela José Sócrates? Excepto o juiz Ivo Rosa e o Miguel Sousa Tavares, quero dizer?   

Não haverá países isentos do pecado dessa gula de poder, dinheiro, influência, que apodrece a confiança das pessoas, não só nas instituições democráticas, mas, em todos os que estão mesmo ali ao lado, porque, entretanto, o favor, a corrupção maltrapilha, se torna tão banal que os que tentam resistir-lhe são vistos como otários dignos de óscares. E de pena. É difícil escapar. Acabamos enredados na teia do sistema, do jeito, do não levantar problemas, do toda a gente faz. Os políticos são todos iguais, porque lhes permitimos ser iguais. Vociferam indignações quando convém exibir pruridos beatos, com escândalo, mas sem vontade de mudar, porque nunca se sabe quando será deles o banquete; e nós praguejamos nas filas dos serviços públicos, ditando sentenças, sem nunca, quase nunca, levar a sério o que reclamamos: não vale a pena, não é? E se há gente corrupta em todos os cantos e noutros países também, por cá os donos-disto-tudo, dos mais aos menos poderosos sentem-se impunes, porque, na prática, são impunes, ou têm sido impunes. Da banca à política, há, aparentemente, crimes perfeitos. Mesmo quando é possível provar que o crime foi cometido, nunca se encontra o criminoso, nunca há a quem atribuir responsabilidades. No topo da hierarquia, bem entendido. É como se a dada altura da cadeia de poder as instituições fossem geridas e administradas por fantasmas. Há sempre caras a quem atribuir prémios de desempenho, mesmo que o desempenho seja coroado por ano de muitos prejuízos, mas raramente se distingue o rosto do incompetente doloso ou negligente. E quando, por absurdo, a proeza se alcança, os tempos da justiça tornam impossível qualquer acto da sua aplicação exemplar, correctora. Portanto, sim, a impunidade é a norma. O despudorado riso de Berardo – que ninguém esquece – foi, na altura, a prova viva dessa realidade que muitos julgam, mais do que consentida, cirurgicamente urdida nos bastidores da promiscuidade entre os grandes escritórios de advogados e a política, a justiça, o poder económico, a banca, a alta finança. A sua detenção faz-nos sentir vingados, sim, e isso é péssimo e é perigoso para a nossa democracia.