sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Tenho abusado de todos os logros para me manter à margem da actualidade. À tona do mundo em destroços, cada vez menos suportável sem uma pequena dose de inconsciência que me resgate da realidade crua, implacável. É preciso uma certa dose de inconsciência, sim, para que o mundo não doa insuportavelmente. Não é só o Afeganistão. O Afeganistão é só a ferida a céu aberto neste instante exacto; o rosário que alimenta o drama mediático do momento. Ainda há pouco era o Haiti, e já quase ninguém fala do Haiti; ou de todos os outros infernos antes desses. A indignação civilizada é o riscar de um fósforo, esgota-se rapidamente à espera da ignição seguinte. Deve, pois, residir na inconsciência essa tentativa de decoro possível, do equilíbrio que se ensaia entre o privilégio de uns e o infortúnio de outros. Se não somos todos vítimas, alguns haveremos de ser carrascos, seja por actos ou omissões. A convivência com as duas realidades pode ser intolerável sem a dose mínima de alheamento. O mundo é o que é, não é? Ou talvez haja mesmo alguma escala infame sobre a qual o sofrimento seja objectivamente mensurável