quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Regresso várias vezes ao mesmo lugar. De cada vez, o mesmo assombro, o mesmo encanto. O mesmo desassossego. E outra coisa qualquer que ainda não aprendi a definir. Entre o silêncio frio das noites do deserto, que enrouquece os sentidos, e o brilho intenso das estrelas, lá em cima, bordando a ouro e prata o céu de veludo, de azul enegrecido como a asa lisa de um corvo. Entre o murmúrio da água antecipando o dilúvio e o cheiro agreste do vento afiado que sopra na minha memória, e há sempre uma ameaça de cólera no vento gelado do deserto. A areia fina e dourada que escorre, ébria, do cimo das dunas, em pérolas minúsculas, um xaile de faz-de-conta da mais rica renda resvalando lento como gotas de orvalho sobre os meus ombros nus, e o luar redondo, de dedos suaves e seguros, tatuando caminhos no ar à flor da pele. Da minha pele. Ou a ladainha das folhas secas de Outono que se soltam dos ramos esguios das árvores num crepitar de folhos, um sussurro glacé como o esvaziar estalado das ondas na beira da praia. Regresso como quem procura sem saber bem quem ou o quê. Onde, quando, o que és exactamente, se te tive alguma vez para lá das sombras com que te alimento.