sexta-feira, 29 de outubro de 2021

É preciso fazer um esforço para permanecer indiferente aos dias de nojo. Ocupo-me de coisas inúteis nos tempos homólogos. A mancha de vinho tinto na toalha de linho, o jarro grande de vidro da mesa da sala que não sei se deixe vazio ou encha de tulipas ou de girassóis. Ainda encontrei tulipas e também gosto de girassóis. O creme de mãos que me esqueci de adicionar à última lista de compras e o verniz das unhas que só uso em tom beringela tão escuro como o fundo do poço onde, por vezes, me deixo naufragar. Sem culpa, sem drama. A pele do salto do sapato, vertiginoso, a reclamar conserto pelo uso imoderado. O pequeno brinco de ouro baço daquele par que adoro e perdi não sei bem quando nem onde, o perfume que não uso há anos porque há cheiros que acendem memórias, algumas vorazes, movediças, e as minhas armam-me ciladas de onde nem sempre consigo escapar ilesa. Depois, há a beleza perfeita do erguer do dia. O milagre das cores da alvorada, o silêncio cavo da noite assaltado pelo ronronar espumoso das ondas do mar adormecido, ainda, sob o ondular da água à superfície, lento, lento, um resfolgar degradé de azuis celestes que se arrastam sedosos como véus, como a língua sobre a pele. Ah, o Universo sabe bem o que faz. Não quer é saber nada de nós.