Não imagino o que é viver presa a um corpo que se odeia. Nem estou sequer a falar de “aceitação”, que sou bastante mais frágil, mais fútil, do que isso. Nasci mulher, gosto de ser mulher e a genética foi minha amiga. Sou bastante saudável em todos os sentidos do termo que importam e vivo muito bem com todos os meus defeitos e virtudes. Não imagino a dimensão do drama e do sofrimento de alguém que se vê como mulher encarcerada num corpo de homem, ou de outro alguém que se vê como homem refém de um corpo de mulher e, embora não entenda o conceito “não-binário” – por defeito meu e só meu –, entendo, e defendo, que todas as pessoas merecem ser tratadas como pessoas. Devem, aliás, esperar ser tratadas com respeito, exigir ser tratadas com respeito.
É-me bastante indiferente, só por isso, pela diferença, ou pelo que eu possa ou não possa deixar de entender, que o meu semelhante do lado seja branco, preto, amarelo às bolinhas ou cor de burro quando foge, e o mesmo é válido para o género, a orientação sexual, taras, crenças, credos e afins: desde que sejam maiores, vacinados ou não, e não cometam abusos contra terceiros, estou-me perfeitamente nas tintas para que o que começou pela sigla LGBT venha a ter mais letras do que aquelas que o alfabeto permite. Mas – voilà, há sempre um mas; é aqui que me acusam de uma fobia qualquer, e tenho várias, algumas inclusive contra dois, três ou mais, de certeza mais, dos meus semelhantes – custa-me bastante aceitar uma inclusão que pretende, afinal, excluir, anular em vez de integrar. A linguagem neutra é, em muitos contextos, absurda porque torna a comunicação impossível: não aproxima, afasta.
Depois
de J.K. Rowling ter sido atacada por dizer em público que já existe um nome para “pessoas
que menstruam”, são "mulheres", chegou a vez de Margaret Atwood (e há, com
certeza, muito mais boa gente pelo meio) ser chamada de trans-excludente
por ter partilhado um artigo com um título em forma de pergunta: “Why can’t we
say ‘woman’ anymore?”. Não encontrei o artigo aberto e, por isso, não consegui
lê-lo ainda, mas imagino que será de teor idêntico a este, a este, ou a este, e, se for
esse o caso, sinto-me bastante tentada a subscrever. E só se entende tal como “transfobia”
porque vivemos mergulhados num absurdo de polémicas para todos os gostos.
Literalmente. Deixou de haver espaço para pensar, duvidar, discutir. Ou se
pertence a um extremo, de arma em riste, ou não se pertence a lugar nenhum. Prefiro
não pertencer a lugar nenhum. Tenho demasiadas dúvidas, nomeadamente, sobre
este tema: há uns anos – lembro-me porque o escrevi – Bernardinho, um
“lendário treinador brasileiro de voleibol” de quem eu nunca tinha ouvido
falar, ficou debaixo de fogo por ter chamado “homem” a Tifanny. Tifanny era, na
altura, uma atleta transexual que jogava numa equipa de voleibol feminina. O
insulto foi captado pelas câmaras, daí ao levantar da respectiva onda de
indignação foi um instante e Bernardinho acabou por pedir desculpa, dizendo que
se “referia ao gesto técnico e ao controle físico que ela tem, comum aos jogadores do masculino e que a maior parte das jogadoras não tem”. Um
sacrilégio. E, uns meses antes disso, uma atleta transgénero, tendo ganho uma
prova de velocidade numa competição feminina de
ciclismo, tornou-se alvo de críticas, nomeadamente, da atleta que ficou em
terceiro lugar e que considerou a vitória injusta, e, como não podia deixar de
ser, de mensagens de ódio de “fanáticos transfóbicos”. E eu tenho sentimentos
bastante confusos em relação a tudo isto, onde também cabe a linguagem inclusiva. Sobretudo, porque não tenho quaisquer dúvidas em relação à imbecilidade dos insultos
proferidos por uns quantos “fanáticos transfóbicos”, que os há com toda a certeza, nem
sobre a “igualdade” consagrada na Declaração Universal dos Direitos que agora
se dizem Humanos, e parece-me bem: é aqui que é urgente defender a inclusão, lado
a lado com a Justiça. Fazer a ponte entre isso e a realidade desportiva da
Tifanny e da Rachel McKinnon, custa-me bastante mais, independentemente dos direitos e do respeito
que merecem ambas. E rejeito veementemente ser chamada “corpo que menstrua”, ou “corpo com
vagina”, ou qualquer outra coisa que atente contra a integridade plena daquilo que realmente sou: mulher. Com todas as letras e todas as marcas e todos os abusos que já sofri por causa disso e
que serão, seguramente, menos do que os abusos que sofreram outros, nomeadamente,
os transexuais.
Também
não sei se existe uma intenção – disfarçada de integração – de eliminar
a palavra "mulher" e, com isso, regressar a um passado (que para demasiadas
mulheres e meninas ainda é um presente feito de horror) de invisibilidade e
violência. No que toca a géneros, ou a sexos, sou bastante bruta, primária, selvagem, e continuo a achar poucas coisas mais belas do que o entendimento perfeito entre o corpo de um homem e o corpo de uma mulher.