quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Não imagino o que é viver presa a um corpo que se odeia. Nem estou sequer a falar de “aceitação”, que sou bastante mais frágil, mais fútil, do que isso. Nasci mulher, gosto de ser mulher e a genética foi minha amiga. Sou bastante saudável em todos os sentidos do termo que importam e vivo muito bem com todos os meus defeitos e virtudes. Não imagino a dimensão do drama e do sofrimento de alguém que se vê como mulher encarcerada num corpo de homem, ou de outro alguém que se vê como homem refém de um corpo de mulher e, embora não entenda o conceito “não-binário” – por defeito meu e só meu –, entendo, e defendo, que todas as pessoas merecem ser tratadas como pessoas. Devem, aliás, esperar ser tratadas com respeito, exigir ser tratadas com respeito. 

É-me bastante indiferente, só por isso, pela diferença, ou pelo que eu possa ou não possa deixar de entender, que o meu semelhante do lado seja branco, preto, amarelo às bolinhas ou cor de burro quando foge, e o mesmo é válido para o género, a orientação sexual, taras, crenças, credos e afins: desde que sejam maiores, vacinados ou não, e não cometam abusos contra terceiros, estou-me perfeitamente nas tintas para que o que começou pela sigla LGBT venha a ter mais letras do que aquelas que o alfabeto permite. Mas – voilà, há sempre um mas; é aqui que me acusam de uma fobia qualquer, e tenho várias, algumas inclusive contra dois, três ou mais, de certeza mais, dos meus semelhantes – custa-me bastante aceitar uma inclusão que pretende, afinal, excluir, anular em vez de integrar. A linguagem neutra é, em muitos contextos, absurda porque torna a comunicação impossível: não aproxima, afasta.

Depois de J.K. Rowling ter sido atacada por dizer em público que já existe um nome para “pessoas que menstruam”, são "mulheres", chegou a vez de Margaret Atwood (e há, com certeza, muito mais boa gente pelo meio) ser chamada de trans-excludente por ter partilhado um artigo com um título em forma de pergunta: “Why can’t we say ‘woman’ anymore?”. Não encontrei o artigo aberto e, por isso, não consegui lê-lo ainda, mas imagino que será de teor idêntico a este, a este, ou a este, e, se for esse o caso, sinto-me bastante tentada a subscrever. E só se entende tal como “transfobia” porque vivemos mergulhados num absurdo de polémicas para todos os gostos. Literalmente. Deixou de haver espaço para pensar, duvidar, discutir. Ou se pertence a um extremo, de arma em riste, ou não se pertence a lugar nenhum. Prefiro não pertencer a lugar nenhum. Tenho demasiadas dúvidas, nomeadamente, sobre este tema: há uns anos – lembro-me porque o escrevi – Bernardinho, um “lendário treinador brasileiro de voleibol” de quem eu nunca tinha ouvido falar, ficou debaixo de fogo por ter chamado “homem” a Tifanny. Tifanny era, na altura, uma atleta transexual que jogava numa equipa de voleibol feminina. O insulto foi captado pelas câmaras, daí ao levantar da respectiva onda de indignação foi um instante e Bernardinho acabou por pedir desculpa, dizendo que se “referia ao gesto técnico e ao controle físico que ela tem, comum aos jogadores do masculino e que a maior parte das jogadoras não tem”. Um sacrilégio. E, uns meses antes disso, uma atleta transgénero, tendo ganho uma prova de velocidade numa competição feminina de ciclismo, tornou-se alvo de críticas, nomeadamente, da atleta que ficou em terceiro lugar e que considerou a vitória injusta, e, como não podia deixar de ser, de mensagens de ódio de “fanáticos transfóbicos”. E eu tenho sentimentos bastante confusos em relação a tudo isto, onde também cabe a linguagem inclusiva. Sobretudo, porque não tenho quaisquer dúvidas em relação à imbecilidade dos insultos proferidos por uns quantos “fanáticos transfóbicos”, que os há com toda a certeza, nem sobre a “igualdade” consagrada na Declaração Universal dos Direitos que agora se dizem Humanos, e parece-me bem: é aqui que é urgente defender a inclusão, lado a lado com a Justiça. Fazer a ponte entre isso e a realidade desportiva da Tifanny e da Rachel McKinnon, custa-me bastante mais, independentemente dos direitos e do respeito que merecem ambas. E rejeito veementemente ser chamada “corpo que menstrua”, ou “corpo com vagina”, ou qualquer outra coisa que atente contra a integridade plena daquilo que realmente sou: mulher. Com todas as letras e todas as marcas e todos os abusos que já sofri por causa disso e que serão, seguramente, menos do que os abusos que sofreram outros, nomeadamente, os transexuais.

Também não sei se existe uma intenção – disfarçada de integração – de eliminar a palavra "mulher" e, com isso, regressar a um passado (que para demasiadas mulheres e meninas ainda é um presente feito de horror) de invisibilidade e violência. No que toca a géneros, ou a sexos, sou bastante bruta, primária, selvagem, e continuo a achar poucas coisas mais belas do que o entendimento perfeito entre o corpo de um homem e o corpo de uma mulher.