...ou da estupidez de uma (suposta) linguagem inclusiva.
"Quando se é notificada pela “The Lancet”, uma revista médica com mais de 100 anos, de que está na hora de dizer “corpos com vaginas” em vez de “mulheres”, justifica-se um momento de desorientação. Perante o espernear de muitos dos corpos assim rebatizados, apareceu um pedido de desculpas e uma justificação: a nova nomenclatura pretende não deixar de fora quem, tendo órgãos genitais femininos, não se identifica como mulher. Em nome da linguagem inclusiva das pessoas transgénero e intersexuais, temos direito a todo um novo campo lexical para evitar cuidadosamente a palavra “mulher”. As grávidas são “seres gestantes” no orçamento para a saúde norte-americano; as associações contra o cancro dirigem campanhas aos “indivíduos com colo do útero”.
"Aquelas cujo nome não pode ser pronunciado” são sempre
as mulheres. Quem nasceu sob o signo biológico da masculinidade parece ter mais
que fazer do que exigir “corpos com pénis”, “pessoas com próstata” ou
“fornecedores de espermatozoides”. Esta batalha semântica entre o mulherio
biológico deve estar a dar jeito ao patriarcado. Não há como dividir para
reinar. Intimados a tomar posição sobre a qualificação do colo do útero como
exclusivamente feminino, os líderes dos partidos ingleses, todos homens,
responderam “é complicado…”. Escaparam assim a perguntas incómodas sobre a
representatividade das mulheres ou a situação dos cuidados médicos para a
comunidade transgénero.
Dizem que esta terminologia abrangente é libertadora.
Pode ser, mas só com um glossário debaixo do braço. Quantas portadoras de um
colo do útero estão realmente cientes desse facto? Os “seres gestantes” vão
mesmo compreender que são eles os destinatários de uma verba especial para
combater a mortalidade infantil nas comunidades mais desfavorecidas
norte-americanas, logo onde a literacia é mais baixa? Eu própria tive de me
concentrar para perceber que não podia tomar um medicamento por não ter sido
testado em indivíduos at-risk from receptive vaginal sex. E também não garanto
conseguir dar com a ala da maternidade no hospital quando a renomearem UCG —
Unidade de Cuidados Gestatórios.
Se o que está em causa é a forma como a linguagem influencia
o mundo, o palavreado usado arrisca-se a transformá-lo num filme de ficção
científica, com toques pornossádicos e cenas de terror. Todo ele desumaniza. Na
capa da “The Lancet” temos uma boneca insuflável de carne e osso à espera de
ser retalhada por um assassino em série ou pelo médico legista. Os “seres
gestantes” reduzem quem é mãe à sua função reprodutora, uma boa parideira com
ancas adequadas ao ofício.
A identidade é uma afirmação individual, mas também algo
que um grupo partilha. É definida pelo grupo perante os outros grupos, o que
levanta sempre problemas na demarcação das fronteiras. Neste momento, as
fronteiras identitárias entre mulheres e pessoas transgénero estão a ser
policiadas por seguidores do Humpty Dumpty no livro “Alice no País das
Maravilhas” — quem grita mais alto é quem manda e decide o que se diz.
Dispensar a palavra “mulher” é abdicar de uma identidade.
Se o objetivo da linguagem inclusiva é dar visibilidade, o resultado aqui é um
apagão de metade da Humanidade com uma etiqueta que serve sempre e não diz
nada. Se queremos mesmo ser inclusivos, vamos ter de negociar. Talvez começar
por desistir deste jargão supostamente neutro e usar a adição em vez da
subtração. Não sei se repararam, mas dá para dizer “mulheres e todos os que
partilham com elas um aparelho genital”. Incluindo os “dois espíritos”, matéria
que vou ter de estudar."