(…)
com o ódio, apesar das dores, a ferver-lhes lá dentro o que provoca úlceras e
não dá saúde aos ventrículos, somos bichos estranhos, se alguém nos compreende
que explique e refiro-me aos homens que as mulheres nem à bala as entendemos,
são outras, não conheço uma só para amostra em que não haja problemas de
bateria e para as consertar e pôr em condições tinha de se abrir tudo aquilo,
que dia de sol este, meu Deus, até os velhos brilham, desembaciados do
reumático, tanta luz no recreio do secundário onde as alunas flutuam,
sementinhas peludas que não param, quantas, para além da pequena que mora
comigo, me terão entrado até hoje pela janela do quarto poisando aqui e ali,
oscilando sobre os móveis, indo-se embora de novo, aposto que se me soprassem
um bocadinho eu a voar também, não com oitenta quilos, levezíssimo, para cá e
para lá dentro de mim, olha a minha mãe, olha mãe nenhuma, olha a minha avó,
olha eu sozinho, portanto necessitava de concentrar-me antes de começar a
partida, medir as bolas, medir a mesa, sentir o pano verde todo, o comprimento,
a largura, a consciência, as sombras fugidias com que a lâmpada do tecto ia
tentando enganar-me (…)
A Última Porta Antes da Noite
António Lobo Antunes
Há um motivo, incorrigível, para que nunca até esta data tenha sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura a António Lobo Antunes: é um dizer (ou escrever) intraduzível. Não basta a fluência na Língua, em ambas, traduzida e tradutora: é preciso ser-se português dos quatro costados e outras tantas gerações no mínimo para pasmar com aquilo primeiro, e ser capaz de conduzi-lo a outro idioma depois, sem corromper o espanto. E não me refiro ao dédalo feminino que os homens não entendem; há homens – eventualmente não muitos – a quem as mulheres consentem – eventualmente nem sempre – em deixar-se encontrar e entender, e tal linguagem é universal. Não. É um não-sei-quê que vem não-sei-de-onde, que, sim, ao fim de alguns parágrafos intermináveis e uns quantos livros mais ao estilo pode levar ao fastio; mas não a mim. Ainda não.