A
mente detém-se nos detalhes mais bizarros nos momentos mais insólitos. A minha,
seguramente. A de Salman Rushdie afligiu-se com a
mutilação do seu rico fato Ralph Lauren, enquanto o próprio se esvaía em
sangue no chão de um anfiteatro em Chautauqua, esfaqueado por um tipo que não
gostava dele: um par de páginas da obra do escritor, umas palestras no YouTube,
Rushdie era insincero, concluiu, logo, merecia morrer. Não morreu. O atacante
chama-se Hadi Matar, outro extraordinário detalhe, pelo menos, para quem lê
português.
Um dos médicos terá dito a Salman Rushdie que a sua sorte fora a ignorância do agressor sobre como matar um homem com uma faca. “Faca, Meditações na Sequência de uma Tentativa de Homicídio” lê-se numa tarde, e eu tinha alguma curiosidade. Não é fabuloso, penso que nem o pretende – talvez seja apenas a última etapa para a cura absoluta, o derradeiro passo para a reconciliação. Há violência, claro, o relato cru do ataque e dos diferentes estágios da recuperação dolorosa e lenta; há a história de amor do seu actual matrimónio; e há momentos de humor, vários, às vezes negro. A., como Rushdie vai chamando ao seu agressor ao longo do livro, esfaqueou-o 15 vezes durante 27 segundos, o tempo de ler o soneto nº 130 de Shakespeare, o seu preferido. Seu, de Rushdie, claro, A. nem deve saber o que é um soneto. Na entrevista ao escritor no programa 60 minutos Anderson Cooper liga o cronómetro do telemóvel para contar 27 segundos de silêncio críptico, e é realmente perturbador.
Em Janeiro de 1938, fiquei também a saber, Samuel Beckett também foi atacado e esfaqueado. Por que o fez?, perguntou ao agressor: “Je ne sais pas, monsieur, je m’excuse”. Sempre encarei o ódio como um sentimento denso, profundamente envelhecido como um néctar, quase nobre, embora apenas no sentido oposto ao da leviandade, e tão difícil de assumir como o Amor. Mas talvez não. Talvez haja quem possa, simplesmente, amar e odiar sem volúpia, que sei eu, que não odeio ninguém?