quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O filho de uma grande amiga – a amiga que me liga para nos ouvirmos rir, aquela com quem tenho uma relação quase telepática – está, neste momento, na Suécia a fazer parte do mestrado. Recebi a mensagem na segunda-feira ao fim da tarde: uma fotografia do pequeno caderno de instruções sobre o que fazer em caso de guerra. Num primeiro e brevíssimo instante pensei que era uma piada.

Pragmáticos, os suecos.

Março de 2020; o vírus que vinha da China – ou talvez não, tinha escapado de um laboratório em Wuhan, não, não era possível, mostravam os estudos genéticos, talvez sim, afinal os estudos não são conclusivos, enquanto as vacinas são seguríssimas, ou se calhar não. Era a maior ameaça ao mundo que me cabia. Imperava um medo fraterno. A bondade não emergiria das cinzas para suturar a ponto arco-íris as chagas da humanidade, mas havia um embrião de esperança. Estávamos em guerra, quando a guerra podia ser invocada em vão, impunemente, poeticamente, sem agravo nem remorso. Foi ontem, e foi como se se tivesse passado um século. O novo normal deu lugar ao mundo mudou. Uma mutação orgânica, febril, corrosiva, um corpo vivo que se contorce e regenera perpetuando a sua própria fragilidade.

Ando obcecada, furiosa, perplexa, fascinada. A zona de interesse ruiu; resta este entre-lugar, movediço, imparável, de onde só se regressará a ferros, rasgando ventres e carregando as dores. Só a noite me parece inviolada; é nela que te guardo e reconheço.