quarta-feira, 6 de novembro de 2024


Se eu gritar quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo, de súbito, me levasse para junto do seu coração, eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o Belo apenas é o início do Terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e a felicidade continuada de um hábito
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços do mundo nos devora o rosto – a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganadora, que com tanto esforço se ergue em frente do coração solitário? Será ela mais leve para os que se amam?
Ah, apenas ocultam, um ao outro, a sua sorte.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado nos teus braços
para os espaços que respiramos – talvez os pássaros possam sentir o ar mais dilatado, num voo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
um violino d’amore se abandonava. Tudo isto era uma missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal a sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas – essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável louvor. Lembra-te: o herói permanece, a sua própria queda foi um pretexto para ser – nascimento supremo.

Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio esgotado, como se as forças lhe faltassem para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou como ela? Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam se libertarem do objecto amado e,frementes, 
superá-lo?

Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas os santos ouviam, quando o imenso clamor os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, 
e nada percebiam, 

tão absortos ouviam. Não que possas suportar a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,  a incessante mensagem que o silêncio prodiga.

Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz do seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…
O que pede essa voz? A ansiada libertação da aparência de injustiça que às vezes perturba a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais os nossos desejos. Estranho, ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar no seu seio um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiado bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes 
não sabem se caminham entre vivos ou mortos.

Através das duas esferas, todas as idades a corrente eterna arrasta. E a ambas domina com o seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles que se desabituam do terrestre, docemente,
como do suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem, quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.


Rainer Maria Rilker – Primeira Elegia