O
mundo que me habituei a habitar converteu-se numa distopia, orgânica, que
observo fora de mim. Dispo a pele que me contém e pairo sobre este ninho de
cucos, de víboras, observando o caos. Deus está morto, não há profeta que nos
redima. Sinto-me enganada porque acreditei que éramos melhores; acreditei que a
liberdade seria sempre um ponto de apoio onde alavancar a Democracia. Mas a liberdade
também pode escolher ressuscitar as suas próprias tragédias; e por despeito,
não apenas por medo, pela miséria ou pela humilhação: por despeito, consciente
do horror. O povo deixou-se enfastiar. A complexidade, a dúvida, a
responsabilidade. O livre pensamento. Enfastiou-se da lucidez. Farto, ruma à
vala comum, salivando sob a sineta do dono, com a voragem dos curiosos ante os
desastres, não para levar ajuda, mas para beber da ruína. Vai vencendo um
cansaço acre, disfarçado de revolta, que encontra prazer em ver arder o que não
compreende e detesta. A democracia é frágil, exige cuidado, tempo, e o tempo morre
no agora. Eu sou apenas recusa.