Já estávamos familiarizados com as delicadas inverdades,
as inconvenientes fake news e os coloridos factos
alternativos. Também não desconhecíamos os lapsus linguae (acontece
aos melhores…) e as dramáticas descontextualizações; as
proveitosas amnésias dos políticos e dos donos disto tudo e
o desconhecimento periclitante e amador dos gestores de topo.
Faltava-nos, no entanto, a inovadora e elegante dupla negação que
Donald Trump (quem mais!?) invocou para se defender da chuva de duras críticas
de que foi alvo, por assumir publicamente que tomava como verdadeira e impoluta
a palavra de Vladimir Putin no que toca à alegada ingerência russa nas últimas
eleições presidenciais americanas.
“Em quem acredita?”, perguntou o jornalista da Associated
Press, Jonathan Lemire, a Donald Trump lado a lado com o presidente russo, em
plena conferência de imprensa, em Helsínquia. Uma pergunta simples nem sempre
exige uma resposta simples, é um facto. Mas, Donald Trump deu uma resposta
simples; à sua maneira. Se não no conteúdo, pelo menos, na forma. Com a sua
habitual inépcia e vocabulário rudimentar, Trump começou por dizer qualquer
coisa do género “a minha gente falou comigo, Dan Coats e outros, e dizem que
acham que foi a Rússia”. Ora, com o presidente Putin ao seu lado, nada mais
inteligente e astuto do que perguntar ao próprio, não?, pelo que, Donald Trump
rendeu-se a essa brilhante e eficaz estratégia política e rematou “eu tenho o
presidente Putin a dizer que não foi a Rússia e digo isto: não vejo por que
razão seria”. “Não vejo por que razão seria”. Vários forward and rewind depois
(afinal, o inglês, aparentemente, também é uma língua traiçoeira…), posso jurar
que foi mesmo isto que Trump disse. Mas, só que … parece que não.
Dois dias de mimos depois – desde traidor, erro trágico,
vergonhoso, bizarro e afins – Trump foi ao Twitter (outro must)
reforçar a GREAT confidance que tem nos SEUS serviços
de inteligência. Assim, em letras gordinhas e maiúsculas para não haver
mal-entendidos. E, para que não restassem mesmo dúvidas – afinal “devia
ter sido óbvio, pensei que fosse óbvio, mas, queria esclarecer para o caso de
não ter sido” – Trump veio afirmar que, nas suas declarações em
Helsínquia, usara a palavra, “seria”, em vez de “não seria”. Ou seja, frase
deveria ter sido “Não vejo nenhuma razão por que não seria a Rússia.” Uma espécie de dupla
negativa, também nas sábias palavras do próprio. Tudo isto, em directo para
as televisões e sem corar de vergonha. A seguir, ainda aceitou (imagino
que a custo) a conclusão dos Serviços Secretos americanos de que houve
interferência da Rússia nas eleições de 2016, para logo acrescentar que
também poderiam ter sido outros, pois há muita gente por aí…
Imagino que, quando voltar a reunir-se com Vladimir
Putin, Donald Trump lhe explique que, desta vez, terá usado a palavra “aceito”
em vez de “não aceito” a conclusão dos seus Serviços Secretos. Mas o diabo mora
nos detalhes e, a provar que eles andam mesmo por aí,
as luzes da sala onde Donald Trump se desdizia com máxima e empolgante
convicção desligaram-se.
Tudo isto teria imensa graça, não fosse dramático e perigoso. Foi inaugurada uma nova forma de estar na política (e não só), onde cabem todas as formas possíveis da mais perniciosa desonestidade e com as quais, aparentemente, se convive bem, pois causam menos indignação do que todas as formas do é p´ro menino e p´ra menina e seus derivados.