segunda-feira, 23 de julho de 2018

Presumíveis Culpados, ou a Vergonha de Ser Honesta

Quando alguém atira uma beata de cigarro pela janela do carro que vai à nossa frente ou quando temos que afastar as beatas da areia para estender as toalhas de praia – mesmo naquelas praias que ostentam o típico símbolo de qualidade ambiental – não poucas vezes o meu marido desabafa um resignado “todos os fumadores são porcos até prova em contrário”. Assim mesmo. Em tom depreciativo. Para os porcos, porque, aparentemente, os animais até são limpos, sensíveis e inteligentes. Não os que atiram as beatas para o chão, os outros.

Adiante. Na política e nas elites sociais será mais assim: todos os suspeitos são culpados até prova em contrário. Se não é assim, parece exactamente assim. De José Sócrates a Manuel Pinho, de Armando Vara a Henrique Granadeiro, de Ricardo Salgado a Zeinal Bava, e tantos, mas tantos, etceteras mais que já ninguém acredita numa palavra desta gente.

Quando algum peixe graúdo surge apontado como suspeito ou arguido de qualquer crime, há três coisas que me fazem sempre suspeitar da suposta vontade que manifestam no cabal esclarecimento da verdade: a evocação do eterna e selectivamente violado segredo de justiça, a reclamação da presunção de inocência e a escolha dos doutos advogados de defesa.

Este fim de semana, ler o jornal Expresso e as revistas Visão e Sábado foi um exercício de levar à náusea qualquer pessoa de bem; impróprio para pessoas decentes que, apesar de tudo, ainda existem neste maravilhoso país. Deviam ter sido vendidos com bolinha vermelha acompanhada da indicação as publicações que se seguem contêm notícias susceptíveis de ferir o sentido de honra e decência dos leitores.

Quando se diz que, em Portugal, as pessoas são invejosas em relação a quem tem dinheiro deve ser porque, quando se vê como é que algum dinheiro é ganho, a margem é pouca para acreditar no mérito próprio. Entre as amnésias selectivas, os desconhecimentos súbitos e altamente oportunos, os procedimentos legais-barra-imorais e outras coisas que tais, sobra pouco para o benefício da dúvida e para a tal presunção de inocência. A promiscuidade entre política, negócios e alta finança é tanta e tão descarada que é impossível não desconfiar de toda a gente. E os esquemas estão tão enraizados na nossa maneira de estar que há quem conviva bem com ter uma “casa” recuperada com dinheiro que portugueses de bem (alguns, sabe-se lá com que sacrifício próprio!) reuniram para acudir às vítimas dos acontecimentos mais dramáticos que se viveram em Portugal, no verão passado. Não é nada de mais, certo? Os deputados também dão moradas de casas onde não vivem para poder engordar os ordenados mais um bocadinho e muitos encarregados de educação fornecem moradas falsas para matricular os seus filhos nas melhores escolas. Dir-se-á que não é comparável, é um facto, mas a questão é aceitação do que é errado como sendo normal. Os que entram no esquema são expeditos e inteligentes; os honestos, basicamente, otários e pouco eruditos.

Ser honesto não devia ser motivo de exultação, mas, pelo menos, não devia embaraçar-nos. Ainda assim, aqui há uns anos, vivi uma situação surreal que me fez ter alguma vergonha de ser séria. Encontrei-me com uma amiga na Fnac do Cascaishopping. Enquanto ela não chegava, sentei-me na parte da cafeteria, com um livro que pretendia comprar e comecei a ler, para ocupar o tempo. Quando a minha amiga chegou, trazia um embrulho que me entregou. Era uma T-shirt para o meu filho, pintada com um desenho do filho dela. Uma oferta de afectos. O caso é que coloquei o embrulho em cima do livro (tinham mais ou menos as mesmas dimensões) e fomos ficando por ali, a conversar. Quando, finalmente, saímos as duas da Fnac, nunca mais me lembrei do livro. O alarme, à porta da loja, não soou e só quando voltei a entrar no meu carro e pousei as coisas no banco ao lado é que reparei que saíra sem pagar o livro! Voltei à Fnac para fazer o pagamento e expliquei a situação, desculpando-me. A senhora que me atendeu chamou-me anjinho. Estive para lhe atirar o livro à cabeça. Nunca tinha tido vergonha de ser uma pessoa honrada, mas, parece que tinha sido mais avisado ter seguido o meu caminho. Parece o retrato perfeito da sociedade em que vivemos.