Uma, pelo menos uma, das palavras não existe, eu sei,
mas, como divago entre conspirações, aplica-se.
Que “a realidade supera a ficção” é daqueles clichés,
como se diz, que se resgata de cada vez que o mundo – mesmo que seja só o
nosso, num momento – nos espanta. E o mundo espantou-nos para lá do razoável.
Esbofeteou-nos. Ninguém estava preparado para o que por aí veio,
também costuma dizer-se. A diferença, dramática, está na extensão da tragédia.
Nos dias que se arrastam, penosos, à mercê dos números e dos modelos
matemáticos que a pandemia insiste em iludir. Há uma cacofonia
de modelos, e métodos, e percepções, e abstracções, e juízos
atabalhoados, erres-zero e erres-tê que
marcam a fronteira onde a teoria e a prática esbarram com estrondo, ora no
número de infectados, ora no das mortes que engordam as notícias, a notícia,
e a curva que se quer plana a todo o custo, sem que que o custo se revele igual
para todos. Morre-se da doença ou morre-se da cura, ouve-se,
encurralados que estamos entre ponderações que nunca pensámos ter de fazer, não
assim, não em directo, escandalosamente.
Percebo que se discorde, percebo que é importante pensar
contra-corrente para que se possa avançar, encontrar alternativas, delinear
estratégias, apontar soluções. Já percebo menos a contra-corrente apenas
para ser do contra, o chique que é agora, entre a classe dita instruída,
académica, especialista, científica, até, dissertar sobre a encenação montada
pelos vários Governos para amansar os seus rebanhos, a coberto de uma pandemia
que – segundo os iluminados – existe mas pouco, ou nada, ou existe com o
propósito diabólico e único de instalar o medo, amordaçar livres vozes e
suspender a democracia por muito mais do que alguns meses.
Por partes, e sem modelos matemáticos – que os há para
todos os gostos, e erres, e esses, e sigmas, e intervalos de confiança e
desconfiança, variâncias e afins.
Como não podia deixar de ser – em sendo plana a Terra, a
vacinação um plano obscuro com o único e pérfido intuito de enriquecer a
indústria farmacêutica e seus derivados, a ida à Lua uma pitoresca produção de
Hollywood e o aquecimento global uma inevitabilidade mais Terrestre do que
terráquea, quando não fictícia -, conjuram-se avisos de alerta contra a
patranha. A maior de todas, a taxa de mortalidade da Covid-19. Todo um mar de
teorias. Mesmo que seja uma e o seu contrário. Morre mais gente por Covid-19 do
que aquilo que o Governo admite. O Governo mente para evitar o pânico. Morre
menos gente por Covid-19 do que aquilo que o Governo admite. O Governo mente
para gerar o pânico.
É evidente que nunca nos contam tudo. Seria mais do que
ingenuidade acreditar no contrário. A pandemia e o medo que (também) a alimenta
servem tentações várias, inclusive a de impor regimes autoritários, e é preciso
olhar atentamente para o que está a acontecer, por exemplo, na Hungria. Mas há
teorias e teorias, conspirações e conspirações. E, francamente, explicar as
imagens brutais de mortos empilhados em camiões frigoríficos, deslocados em
camiões militares, enterrados numa espécie de produção em série macabra, sem
direito ao tempo e ao espaço dignos da despedida, com a lentidão dos
serviços funerários, por medo de tratar dos mortos e/ou
necessidade de os transferir para pontos centrais por obrigações dos
sistemas de saúde, e outras coisas que tais, está, para mim, ao nível do
resfriadinho do Messias que não faz milagres e da tremenda luz que ilumina os
alucinados, lixiviados e desinfectados por dentro e (menos) por fora.
Outra coisa bem diferente é discutir os riscos que queremos correr. Com verdade. Assumir que o país - os países - não pode permanecer encerrado em casa, que nem todos continuam a receber salário, muito menos, por inteiro. Que há um certo privilégio em ficar em casa que não assiste a todos e que se estende para lá de hashtags fofas, das aulas de catequese do Rodrigues Guedes de Carvalho, das palmas à janela e das sessões de ópera do meu vizinho de frente: sou sensível a tudo, mas, como muitos, já esgotei a graça de tal estado de coisas. Os equilíbrios que urge encontrar e nos inquietam – entre a saúde e a economia, entre a segurança e a liberdade, entre a vida e a morte – já são suficientemente graves e dramáticos, não carecem de delírios. E também não são de hoje, os equilíbrios e os desafios que enfrentamos. A diferença está em que o "hoje" despiu-nos, e nem sempre gostamos do que vemos.