quarta-feira, 29 de abril de 2020

Desconfi(n)amentos

 

Uma, pelo menos uma, das palavras não existe, eu sei, mas, como divago entre conspirações, aplica-se.

Que “a realidade supera a ficção” é daqueles clichés, como se diz, que se resgata de cada vez que o mundo – mesmo que seja só o nosso, num momento – nos espanta. E o mundo espantou-nos para lá do razoável. Esbofeteou-nos. Ninguém estava preparado para o que por aí veio, também costuma dizer-se. A diferença, dramática, está na extensão da tragédia. Nos dias que se arrastam, penosos, à mercê dos números e dos modelos matemáticos que a pandemia insiste em iludir. Há uma cacofonia de modelos, e métodos, e percepções, e abstracções, e juízos atabalhoados, erres-zero e erres-tê que marcam a fronteira onde a teoria e a prática esbarram com estrondo, ora no número de infectados, ora no das mortes que engordam as notícias, a notícia, e a curva que se quer plana a todo o custo, sem que que o custo se revele igual para todos. Morre-se da doença ou morre-se da cura, ouve-se, encurralados que estamos entre ponderações que nunca pensámos ter de fazer, não assim, não em directo, escandalosamente.

Percebo que se discorde, percebo que é importante pensar contra-corrente para que se possa avançar, encontrar alternativas, delinear estratégias, apontar soluções. Já percebo menos a contra-corrente apenas para ser do contra, o chique que é agora, entre a classe dita instruída, académica, especialista, científica, até, dissertar sobre a encenação montada pelos vários Governos para amansar os seus rebanhos, a coberto de uma pandemia que – segundo os iluminados – existe mas pouco, ou nada, ou existe com o propósito diabólico e único de instalar o medo, amordaçar livres vozes e suspender a democracia por muito mais do que alguns meses.

Por partes, e sem modelos matemáticos – que os há para todos os gostos, e erres, e esses, e sigmas, e intervalos de confiança e desconfiança, variâncias e afins.

Como não podia deixar de ser – em sendo plana a Terra, a vacinação um plano obscuro com o único e pérfido intuito de enriquecer a indústria farmacêutica e seus derivados, a ida à Lua uma pitoresca produção de Hollywood e o aquecimento global uma inevitabilidade mais Terrestre do que terráquea, quando não fictícia -, conjuram-se avisos de alerta contra a patranha. A maior de todas, a taxa de mortalidade da Covid-19. Todo um mar de teorias. Mesmo que seja uma e o seu contrário. Morre mais gente por Covid-19 do que aquilo que o Governo admite. O Governo mente para evitar o pânico. Morre menos gente por Covid-19 do que aquilo que o Governo admite. O Governo mente para gerar o pânico.

É evidente que nunca nos contam tudo. Seria mais do que ingenuidade acreditar no contrário. A pandemia e o medo que (também) a alimenta servem tentações várias, inclusive a de impor regimes autoritários, e é preciso olhar atentamente para o que está a acontecer, por exemplo, na Hungria. Mas há teorias e teorias, conspirações e conspirações. E, francamente, explicar as imagens brutais de mortos empilhados em camiões frigoríficos, deslocados em camiões militares, enterrados numa espécie de produção em série macabra, sem direito ao tempo e ao espaço dignos da despedida, com a lentidão dos serviços funerários, por medo de tratar dos mortos e/ou necessidade de os transferir para pontos centrais por obrigações dos sistemas de saúde, e outras coisas que tais, está, para mim, ao nível do resfriadinho do Messias que não faz milagres e da tremenda luz que ilumina os alucinados, lixiviados e desinfectados por dentro e (menos) por fora.

 

Outra coisa bem diferente é discutir os riscos que queremos correr. Com verdade. Assumir que o país - os países - não pode permanecer encerrado em casa, que nem todos continuam a receber salário, muito menos, por inteiro. Que há um certo privilégio em ficar em casa que não assiste a todos e que se estende para lá de hashtags fofas, das aulas de catequese do Rodrigues Guedes de Carvalho, das palmas à janela e das sessões de ópera do meu vizinho de frente: sou sensível a tudo, mas, como muitos, já esgotei a graça de tal estado de coisas. Os equilíbrios que urge encontrar e nos inquietam – entre a saúde e a economia, entre a segurança e a liberdade, entre a vida e a morte – já são suficientemente graves e dramáticos, não carecem de delírios. E também não são de hoje, os equilíbrios e os desafios que enfrentamos. A diferença está em que o "hoje" despiu-nos, e nem sempre gostamos do que vemos.