domingo, 22 de março de 2020

Em desalinho

 

Os últimos dias abateram-se sobre nós com a fúria implacável que costumam ter as tragédias naturais: sem piedade, sem contemplações de espécie alguma, sem pudor nem remorsos. Olho para os números (é mais suportável, se formos números?) de Itália e pasmo de incredulidade, e de algo mais que ainda não aprendi a definir. Ainda não aprendi a definir uma enormidade de coisas.

Um dia qualquer desta semana – uma semana, apenas? –, ao ouvir Boris Johnson anunciar, finalmente, uma série de medidas da contenção possível em tempo de todas as incertezas, o meu filho perguntava, sem esperar pela resposta, “já ninguém se lembra da Theresa May, pois não?”, e, naquele desabafo infantil, inocente, resumia o atropelo de acontecimentos que tentamos fazer encaixar com a resiliência que nos falta quando achamos que somos invencíveis.

De todas as metáforas com que nos entretêm, a da onda gigante que varreu (e não terminou, ainda) impiedosamente o nosso modo de vida é a que me ocorre mais vezes. E, ainda assim, a comparação é quase obscena. Também não estamos em guerra, mas, talvez seja possível virmos a olhar, depois disto, com menos distanciamento para outras guerras, as que mantemos à distância higiénica e segura de um écran de televisão chique. 

A propósito de guerras - ou de que imaginamos ser a ameaça maior à nossa existência-, enviaram-me, ontem, o vídeo de uma palestra de 2015, onde Bill Gates avisava quem o ouvia de que seria mais sensato – e urgente – prepararmo-nos, eficazmente, para a probabilidade de virmos a enfrentar um vírus altamente contagioso; mais do que, propriamente, uma guerra. Nuclear, no caso.




Não estávamos preparados, como não estamos preparados. Nunca estamos preparados.

Não olho para esta pandemia como a remissão bíblica, ou romântica, de todos nossos pecados. Como se a consequência natural de toda esta balbúrdia inusitada(?) e sinistra fosse um idílico mundo melhor; tardio, sim, mas inevitável, obviamente emergente dos nossos escombros, como a Fénix que ressurge das suas próprias cinzas. As águas mais limpas dos canais de Veneza (mesmo sem golfinhos, nem cisnes - precisamos de acreditar em qualquer coisa...), o chilrear ressuscitado de pássaros regressados, a dramática diminuição da mancha de poluição sobre os céus, primeiro, da China, depois, de Itália, ainda não chegam para me fazer sonhar com as coisas boas que hão-de vir. E hão-de vir, seguramente. De que outra forma poderíamos manter vivo isso a que chamamos esperança? Mas, enquanto isso, há gente que morre sem tempo para lágrimas. Mais uma vez, as imagens que chegam de Itália, as notícias que chegam de Espanha, da Síria, e de todos os cantos do mundo onde a tragédia se instalou sem pedir licença, são avassaladoras. O preço é demasiado alto.

 

No outro dia, no fim de mais um “Governo Sombra” - numa grelha programática onde ainda se ensaia a normalidade possível - ouvi o Carlos Vaz Marques citar uma frase de Franz Kafka: “Não é necessário saíres de casa. Ficas à mesa, e escuta. Não escutes sequer; espera. Não esperes sequer; fica completamente quieto e só. O mundo oferecer-se-á para que o desmascares. Não lhe resta outra coisa. Arrebatado, contorcer-se-á perante ti.” Costumava gostar de silêncios. E dessa solidão que nos preenche quando estamos em paz. Se essa paz me escapar, não saberei o que fazer do mundo que se me oferece e se contorce diante de mim. Nunca estamos preparados para o absurdo, fora das páginas dos livros. Mesmo dos livros que nos consomem.

Em pouco mais de dois meses, uma avalanche de acontecimentos rasgou a normalidade dos meus dias. De todos os dias. Caio em câmara lenta, preparada para o embate iminente. Ninguém, ainda, sabe ao certo quando, nem como, mas o ponto de impacto está ali, à espreita, à espera, voraz como todas as catástrofes. Sempre me comocionou a capacidade de resistência dos que suportam em ombros e em carne viva todas as contrariedades das miseráveis vidas que, só por acaso, não são as nossas. Estamos tão impreparados para a adversidade que só por idiotice poderemos comparar o nosso infortúnio com o de outros; e, no entanto, ninguém sabe o que trará o próximo dia, se é que o soubemos alguma vez. Estarão certos, os que crêem que há uma sobreavaliação do perigo que corremos, um quase histerismo não necessário e mais difícil de vir a ultrapassar do que a própria pandemia? E claro que não me refiro à classe de imbecis onde cabem os trumps e os bolsonaros. Se alguma coisa resultar de realmente benigno para o mundo que sobrar, espero que seja, precisamente, a queda estrondosa deste tipo de líderes: cínicos, cobardes e fraudulentos. 

 

Entretanto, vejo o mar da minha janela. Tranquilo. Alheio ao turbilhão de acontecimentos que nos inundam as horas em suspenso. De alguma forma, tranquilizo-me, também. Há um antes, e haverá um depois. Não acredito em milagres. Mas, acredito na ciência, na inteligência dos mais competentes e na capacidade de resistência que emerge da união de esforços, quando o desafio assim o reclama