sábado, 21 de novembro de 2020

Caminhos Cruzados

 

O cego vai batendo com a bengala nas pedras que dão forma à calçada bordada no passeio estreito e iluminado pelo radioso sol primaveril. Parece um pouco aflito, confundido, procurando algo que não se acha ali, mas devia, e, nessa ligeira angústia, roda sobre si próprio, ora à esquerda, ora à direita, sem nunca se distanciar demasiado daquele ruído metálico que a calçada devolve.

Do outro lado da rua, um homem atenta no desassossego urgente do cego. Encaminha-se para ele.

    -Precisa de alguma coisa?

   -Estou à procura da lavandaria, mas, parece-me que não é por aqui… - a bengala batucando, ágil e certeira, no chão e no rebordo do passeio, soltando notas, compondo sílabas desencontradas.

    -Há aqui uma lavandaria, um pouco mais à frente, eu levo-o até lá – e pega-lhe no braço, suavemente, orientando-o no caminho adiante.

Não chegam a meia-dúzia de passos. O cego sobressalta-se, olhando em frente, atento ao diálogo que arranca do chão a golpes firmes, experimentados. Estaca, teimoso, no passeio, “não, não é por aqui”, enquanto o homem insiste, “está logo ali, a lavandaria, já lhe vejo a porta de entrada”. Mas, o cego não vacila, não duvida, “não é por aqui”, e logo volta atrás, arredio e decidido.

  -Ó amigo, tenha calma. Eu levo-o aonde o senhor precisar de ir. Diga-me, exactamente, que lavandaria é essa, porque, aqui, não conheço outra além desta…

E o cego explicou, apaziguado, confiando no seu instinto e na bondade do homem.

    -Eu saio do autocarro, viro à direita, caminho uns poucos de metros à minha frente, viro novamente à direita e encontro logo a lavandaria…há dois degraus à entrada…

Então, os dois homens voltam atrás, juntos. Retomam o caminho a partir da paragem do autocarro e vão seguindo a memória do cego. A bengala vai à frente, matraqueando, marcando o passo, astuta e ligeira, materializando acordes que apenas o cego pode ler e decifrar.

   -Ah, parece-me que, agora, sim, já vou no caminho certo – alegra-se o cego, estugando o passo. O homem segue-o, expedito, suspendo daquela melodia a que não é totalmente surdo, mas que nunca chega a compreender.

Só mais uns passos, à esquina direita da rua, e, lá está ela, “sim, agora vou bem!”, a lavandaria com os seus dois degraus à entrada. De fora, não se percebe que há uma lavandaria no interior, porque a loja tem várias secções. O cego conhece-a bem, o homem nunca antes havia reparado nela.

    -Obrigado!

  -Ora essa…boa tarde! – e o homem volta à sua rotina, uma admiração alegre e prazenteira estampada no rosto.


(Numa normal Primavera passada)