quarta-feira, 17 de julho de 2024

Vou cometer um pequeno crime. Mais ou menos. Este canto é demasiado modesto, na verdade, para que isto se possa chamar um crime crime. E não quero correr o risco de o perder, como aconteceu com o seu artigo sobre Michael Jackson, que nunca mais encontrei.

Tenho uma relação de amor-ódio com Clara Ferreira Alves, entre o ler e o ouvir, mesmo discordando com muito, frequentemente e em ambos os casos. Não neste, para que fique claro, em que concordo mais do que discordo.


"Trump Trauma

Trump entrou na história americana. Está convencido de que Deus o protegeu. Não Jesus, Deus Ele mesmo

 

“Money, money, money

Must be funny

In the rich man’s world”

Abba

 

Não se concebe um texto sobre a Convenção Republicana e o grande, o ciclópico Donald J. Trump, a citar Yeats e o poema sobre o centro que não segura, “Things fall apart; the centre cannot hold”. Abba é muito mais adequado e a canção ‘Money, Money, Money’ podia ser o hino da América. O mundo dos ricos é mais divertido do que o dos pobres, mas... os pobres querem eleger os ricos. Como é que isto aconteceu é o tema do livro de J. D. Vance, “Hillbilly Elegy”. Best-seller, topo da lista do “New York Times”, e quantos podem dizer o mesmo? Até os liberais acharam que era a melhor explicação para a vitória de Trump em 2016. J. D. é um convertido ao trumpismo, depois de o considerar hitleriano e um vácuo cultural. A divina América respira os vapores da religião, onde todos os conversos são bem-vindos. E não, Trump não é Hitler.

Disse J. D., vamos lá tentar perceber essa coisa dos pobres que repudiam a assistência social. Os desempregados pela automatização e o outsourcing das manufaturas no estrangeiro, os destituídos pelo fim dos modos tradicionais de cultivar e crescer, os agricultores falidos, os desempregados pela agonia do carvão e a quimera da transição energética dita “verde”, assoberbados por uma economia de serviços e gente qualificada que eles, os trabalhadores manuais, os operários, não acompanham. E aqueles de que ninguém fala, os desempregados da nova economia digital, tão distante das minas e das linhas de montagem, das oficinas e dos tratores, como Marte. Um mundo obscuro que não penetram e que utilizam para comunicar a raiva, o desespero, o rancor e a explicação implausível da realidade, conhecida por teoria da conspiração. O mundo da rede e das redes, onde se formam grupos orgânicos de interesses, ódios e ilusões, células que não param de crescer e se esquecem de morrer. Os pobres que detestam o Estado, os governos e o assistencialismo. Os que querem, como J. D., subir a pulso e ganhar um salário “honesto”. E estimam o sucesso dos ricos, também conhecido por sonho americano.

Quem viajar pela América dentro, aquela América que não aparece nos filmes e no streaming, que não emite em HD, e que nenhum realizador realista quis filmar ou observar, ao contrário do que fez o realismo italiano, de Rossellini a Fellini, de Visconti a Pasolini, verificará que ninguém por ali lê o “New York Times” ou vê a CNN americana. Ninguém sabe dos devaneios neste deserto das almas do europeu Wim Wenders ou do surrealista David Lynch, demasiado intelectuais. Ninguém viu os épicos de Terrence Malick, a tentativa de conferir poesia visual a um mundo parado no tempo, envolto no nevoeiro da dúvida e da identidade, amante de coisas simples, um Deus desconhecido, a família, as armas, a América como nação eleita.

Lembro-me de entrar numa loja do Iowa, uma loja junto a um motel daqueles do fim da estrada da solidão, como nas telas de Hopper, e de ver dois jornais à venda, dois exemplares do velho “New York Times” dos domingos, que pesava um quilo. Só o dos domingos era vendido, e quando perguntei se alguém lhe pegava foi-me respondido que não, nunca. Iam deixar de ter o mono. Quando muito, as pessoas dedilhavam o “USA Today”, gratuito nos hotéis.

Claro que a tropa elitista de Manhattan e os hipsters suburbanos, tal como a tropa da Califórnia, não passa férias no coração do Oklahoma e do Texas, onde só se come carne vermelha e os caniches das senhoras têm laços cor-de-rosa. Hollywood não visita o aço de Pittsburgh ou os campónios da Virgínia Ocidental. Nem Milwaukee ou Cheyenne. Não fazem churrascos aos domingos no quintal e não bebem grades de cerveja ao fim de semana. Não abanam os corpos nos cânticos evangélicos da igreja e do pastor de almas e nunca, nunca, pisam um saloon de música country e danças de cowboys. Nas cidades americanas dois mundos coexistem, duas épocas. O passado e o presente. A par dos que nasceram na economia digital vegetam os que só sabem usar as mãos e nunca estudaram. Que estes dois mundos se encontrem na promessa de um Presidente Trump é o milagre americano.

Na marcha dos direitos civis e da wokeness, os brancos pobres e remediados ficaram atrás dos LGBT e dos negros, uma underclass sem representação. Até os asiáticos e alguns latinos escolhidos foram repescados como dignos de atenção e quotas, mas os rednecks não tinham peões neste xadrez. Ameaçaram retirar-lhes o direito a usar armas e a América elegeu um Presidente negro e, talvez, segundo Trump na primeira estaca política da escalada, um Presidente muçulmano. Talvez estrangeiro. Foi aqui que começou a jornada de Donald J. Na exigência de ver o bilhete de identidade de Barack Obama, onde tinha nascido.

Ninguém prestou atenção, muito menos os liberais, seguros na superioridade das intenções. Nessa América zangada e que soprava as cinzas do 11 de Setembro, essa América que nunca foi a Nova Iorque ou Los Angeles e que foi enviada para combater e morrer no Afeganistão e no Iraque, a pergunta de Trump ressoou.

Não podia durar.

O casal Obama era uma visão diária de tudo o que era repulsivo no mundo bem-pensante dos salões de Washington e dos relvados de Martha’s Vineyard. O “pântano”. Obama foi um lugar-comum. Tudo o que fez depois de sair da Casa Branca foi enriquecer à custa, comprar uma mansão em Washington e outra em Martha’s Vineyard, convidar as celebridades liberais para as festas de verão, o George Clooney do costume, e escrever livros cheios de piedades sobre a ascensão social americana. E receber milhões da Netflix. A mulher, que nunca fez nada na vida, tornou-se um ícone do feminismo e direitos civis, enquanto calçava umas botas Balenciaga de 3000 dólares, cravadas de lantejoulas, para falar ao povo e às outras mulheres. Convencidas de que também elas poderiam casar com o seu Obama. Uma atitude absolutamente trumpista. Estilo sem substância.

A grande ambição liberal desta gente foi emular o clã Kennedy e criar uma dinastia política. Esquecendo que os Kennedys fizeram coisas pela América, de facto, e que deixaram um legado democrata. Ted Kennedy, no meio dos escândalos, foi um dos grandes legisladores e reformadores do Congresso, Bob Kennedy, outro reformador, foi um político assassinado antes do tempo, e mesmo o mitológico JFK evitou uma guerra nuclear não evitando o atoleiro do Vietname. O legado de Obama é o resgate de Wall Street mais a legislação Obamacare, que afundou na burocracia e não chegou para mudar o sistema de saúde americano, refém das seguradoras e das farmacêuticas. O que não foi feito não será feito agora.

Os republicanos organizaram-se atrás de Trump, o seu candidato da Manchúria, o homem que controla os pobres e uma classe média descontente e crédula. O povo MAGA. Triunfante e reforçado pelo apoio do dinheiro americano, o de Wall Street e o de Silicon Valley.

Quando os gigantes da tech, de Peter Thiel a Elon Musk, decidiram que a Casa Branca teria de ser sua, apostaram em Trump. Money, money, money. E no seu homem, J. D. Vance, símbolo do sonho americano, nasce pobre morre rico, e símbolo do sucesso, um ex-marine vindo do mundo difuso do capital de risco e das startups, recusou o cargo de Satya Nadella na Microsoft, sintonizado simultaneamente com a miséria rural dos Apalaches e com o futuro da inteligência artificial. A IA não quer, não precisa e não terá nenhuma regulação política ou institucional. O inimigo é a China e a supremacia tecnológica chinesa, não é uma Rússia envolvida numa guerra congelada, que não ganhará nem perderá, e aguentará. Zelensky já clama por Putin nas negociações de paz, que sempre recusou.

Trump, abençoado e sobrevivo ao atentado, perseguido nos tribunais, sabe que terá o derradeiro mandato. Interessa-lhe mais a marca, sempre interessou, do que a ação. Na verdade, Trump entrou na história americana. Está convencido de que Deus o protegeu. Não Jesus, Deus Ele mesmo. Salvou-o para salvar a América. Donald J. Trump acredita na lenda que criou e nunca recorre a Jesus, que na sua nomenclatura seria um falhado. A loser. Foi apanhado. Como o senador McCain.

A América muda e nessa mudança controla a mudança universal. Imaginar que um partido refém de duas guerras sangrentas e de um Presidente envelhecido conseguirá parar isto é uma fantasia liberal. Como a fantasia, subscrita em inúmeros artigos liberais, de que depois do dia 7 de outubro os palestinianos teriam um país e um Estado independente. Acredite quem quiser.

Mesmo que ganhasse as eleições, Biden estaria condenado à evanescência, a entrar lentamente nessa noite escura. A América mudou. O que vier depois do Trump trauma, um ser falível, humano, será mais invencível do que Trump."

Clara Ferreira Alves, no Expresso