Vou cometer um pequeno crime. Mais ou menos. Este canto é demasiado modesto, na verdade, para que isto se possa chamar um crime crime. E não quero correr o risco de o perder, como aconteceu com o seu artigo sobre Michael Jackson, que nunca mais encontrei.
Tenho uma relação de amor-ódio com Clara Ferreira Alves, entre o ler e o ouvir, mesmo discordando com muito, frequentemente e em ambos os casos. Não neste, para que fique claro, em que concordo mais do que discordo.
"Trump Trauma,
Trump
entrou na história americana. Está convencido de que Deus o protegeu. Não
Jesus, Deus Ele mesmo
“Money, money, money
Must be funny
In the rich man’s world”
Abba
Não
se concebe um texto sobre a Convenção Republicana e o grande, o ciclópico
Donald J. Trump, a citar Yeats e o poema sobre o centro que não segura, “Things
fall apart; the centre cannot hold”. Abba é muito mais adequado e a canção
‘Money, Money, Money’ podia ser o hino da América. O mundo dos ricos é mais
divertido do que o dos pobres, mas... os pobres querem eleger os ricos. Como é
que isto aconteceu é o tema do livro de J. D. Vance, “Hillbilly Elegy”. Best-seller,
topo da lista do “New York Times”, e quantos podem dizer o mesmo? Até os
liberais acharam que era a melhor explicação para a vitória de Trump em 2016.
J. D. é um convertido ao trumpismo, depois de o considerar hitleriano e um
vácuo cultural. A divina América respira os vapores da religião, onde todos os
conversos são bem-vindos. E não, Trump não é Hitler.
Disse
J. D., vamos lá tentar perceber essa coisa dos pobres que repudiam a
assistência social. Os desempregados pela automatização e o outsourcing das
manufaturas no estrangeiro, os destituídos pelo fim dos modos tradicionais de
cultivar e crescer, os agricultores falidos, os desempregados pela agonia do
carvão e a quimera da transição energética dita “verde”, assoberbados por uma
economia de serviços e gente qualificada que eles, os trabalhadores manuais, os
operários, não acompanham. E aqueles de que ninguém fala, os desempregados da
nova economia digital, tão distante das minas e das linhas de montagem, das
oficinas e dos tratores, como Marte. Um mundo obscuro que não penetram e que
utilizam para comunicar a raiva, o desespero, o rancor e a explicação implausível
da realidade, conhecida por teoria da conspiração. O mundo da rede e das redes,
onde se formam grupos orgânicos de interesses, ódios e ilusões, células que não
param de crescer e se esquecem de morrer. Os pobres que detestam o Estado, os
governos e o assistencialismo. Os que querem, como J. D., subir a pulso e
ganhar um salário “honesto”. E estimam o sucesso dos ricos, também conhecido
por sonho americano.
Quem
viajar pela América dentro, aquela América que não aparece nos filmes e
no streaming, que não emite em HD, e que nenhum realizador realista quis
filmar ou observar, ao contrário do que fez o realismo italiano, de Rossellini
a Fellini, de Visconti a Pasolini, verificará que ninguém por ali lê o “New
York Times” ou vê a CNN americana. Ninguém sabe dos devaneios neste deserto das
almas do europeu Wim Wenders ou do surrealista David Lynch, demasiado
intelectuais. Ninguém viu os épicos de Terrence Malick, a tentativa de conferir
poesia visual a um mundo parado no tempo, envolto no nevoeiro da dúvida e da
identidade, amante de coisas simples, um Deus desconhecido, a família, as
armas, a América como nação eleita.
Lembro-me
de entrar numa loja do Iowa, uma loja junto a um motel daqueles do fim da
estrada da solidão, como nas telas de Hopper, e de ver dois jornais à venda,
dois exemplares do velho “New York Times” dos domingos, que pesava um quilo. Só
o dos domingos era vendido, e quando perguntei se alguém lhe pegava foi-me
respondido que não, nunca. Iam deixar de ter o mono. Quando muito, as pessoas
dedilhavam o “USA Today”, gratuito nos hotéis.
Claro
que a tropa elitista de Manhattan e os hipsters suburbanos, tal como
a tropa da Califórnia, não passa férias no coração do Oklahoma e do Texas, onde
só se come carne vermelha e os caniches das senhoras têm laços cor-de-rosa.
Hollywood não visita o aço de Pittsburgh ou os campónios da Virgínia Ocidental.
Nem Milwaukee ou Cheyenne. Não fazem churrascos aos domingos no quintal e não
bebem grades de cerveja ao fim de semana. Não abanam os corpos nos cânticos
evangélicos da igreja e do pastor de almas e nunca, nunca, pisam um saloon de
música country e danças de cowboys. Nas cidades americanas dois mundos
coexistem, duas épocas. O passado e o presente. A par dos que nasceram na
economia digital vegetam os que só sabem usar as mãos e nunca estudaram. Que
estes dois mundos se encontrem na promessa de um Presidente Trump é o milagre
americano.
Na
marcha dos direitos civis e da wokeness, os brancos pobres e remediados
ficaram atrás dos LGBT e dos negros, uma underclass sem
representação. Até os asiáticos e alguns latinos escolhidos foram repescados
como dignos de atenção e quotas, mas os rednecks não tinham peões
neste xadrez. Ameaçaram retirar-lhes o direito a usar armas e a América elegeu
um Presidente negro e, talvez, segundo Trump na primeira estaca política da
escalada, um Presidente muçulmano. Talvez estrangeiro. Foi aqui que começou a
jornada de Donald J. Na exigência de ver o bilhete de identidade de Barack
Obama, onde tinha nascido.
Ninguém
prestou atenção, muito menos os liberais, seguros na superioridade das
intenções. Nessa América zangada e que soprava as cinzas do 11 de Setembro,
essa América que nunca foi a Nova Iorque ou Los Angeles e que foi enviada para
combater e morrer no Afeganistão e no Iraque, a pergunta de Trump ressoou.
Não
podia durar.
O
casal Obama era uma visão diária de tudo o que era repulsivo no mundo
bem-pensante dos salões de Washington e dos relvados de Martha’s Vineyard. O
“pântano”. Obama foi um lugar-comum. Tudo o que fez depois de sair da Casa
Branca foi enriquecer à custa, comprar uma mansão em Washington e outra em
Martha’s Vineyard, convidar as celebridades liberais para as festas de verão, o
George Clooney do costume, e escrever livros cheios de piedades sobre a
ascensão social americana. E receber milhões da Netflix. A mulher, que nunca
fez nada na vida, tornou-se um ícone do feminismo e direitos civis, enquanto
calçava umas botas Balenciaga de 3000 dólares, cravadas de lantejoulas, para
falar ao povo e às outras mulheres. Convencidas de que também elas poderiam
casar com o seu Obama. Uma atitude absolutamente trumpista. Estilo sem
substância.
A
grande ambição liberal desta gente foi emular o clã Kennedy e criar uma
dinastia política. Esquecendo que os Kennedys fizeram coisas pela América, de
facto, e que deixaram um legado democrata. Ted Kennedy, no meio dos escândalos,
foi um dos grandes legisladores e reformadores do Congresso, Bob Kennedy, outro
reformador, foi um político assassinado antes do tempo, e mesmo o mitológico
JFK evitou uma guerra nuclear não evitando o atoleiro do Vietname. O legado de
Obama é o resgate de Wall Street mais a legislação Obamacare, que afundou na
burocracia e não chegou para mudar o sistema de saúde americano, refém das
seguradoras e das farmacêuticas. O que não foi feito não será feito agora.
Os
republicanos organizaram-se atrás de Trump, o seu candidato da Manchúria, o
homem que controla os pobres e uma classe média descontente e crédula. O povo
MAGA. Triunfante e reforçado pelo apoio do dinheiro americano, o de Wall Street
e o de Silicon Valley.
Quando
os gigantes da tech, de Peter Thiel a Elon Musk, decidiram que a Casa
Branca teria de ser sua, apostaram em Trump. Money, money, money. E
no seu homem, J. D. Vance, símbolo do sonho americano, nasce pobre morre rico,
e símbolo do sucesso, um ex-marine vindo do mundo difuso do capital de
risco e das startups, recusou o cargo de Satya Nadella na Microsoft,
sintonizado simultaneamente com a miséria rural dos Apalaches e com o futuro da
inteligência artificial. A IA não quer, não precisa e não terá nenhuma
regulação política ou institucional. O inimigo é a China e a supremacia
tecnológica chinesa, não é uma Rússia envolvida numa guerra congelada, que não
ganhará nem perderá, e aguentará. Zelensky já clama por Putin nas negociações
de paz, que sempre recusou.
Trump,
abençoado e sobrevivo ao atentado, perseguido nos tribunais, sabe que terá o
derradeiro mandato. Interessa-lhe mais a marca, sempre interessou, do que a
ação. Na verdade, Trump entrou na história americana. Está convencido de que
Deus o protegeu. Não Jesus, Deus Ele mesmo. Salvou-o para salvar a América.
Donald J. Trump acredita na lenda que criou e nunca recorre a Jesus, que na sua
nomenclatura seria um falhado. A
loser. Foi apanhado. Como o senador McCain.
A
América muda e nessa mudança controla a mudança universal. Imaginar que um
partido refém de duas guerras sangrentas e de um Presidente envelhecido
conseguirá parar isto é uma fantasia liberal. Como a fantasia, subscrita em
inúmeros artigos liberais, de que depois do dia 7 de outubro os palestinianos
teriam um país e um Estado independente. Acredite quem quiser.
Mesmo
que ganhasse as eleições, Biden estaria condenado à evanescência, a entrar
lentamente nessa noite escura. A América mudou. O que vier depois do Trump
trauma, um ser falível, humano, será mais invencível do que Trump."
Clara Ferreira Alves, no Expresso