quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Coisas que mereceriam atenção...

 ...se a minha atenção não andasse em frangalhos:

 

O regresso à anormalidade escolar. Nem falo da realidade cá de casa, porque até tenho vergonha. Espero, pelo menos, não estar a criar um imprestável, e que ele continue a ser capaz de perceber bem a facilidade com que podemos cruzar a linha, mesmo contra a nossa vontade. Que, muitas vezes, só por acaso nos salvamos. O que tomamos, hoje, como garantido, amanhã, pode ter-se desfeito em farrapos com a mesma facilidade com que o vento desmanchava os bonecos que eu lhe desenhava nas nuvens com a ponta dos dedos e o queixo bem levantado no ar, quando ele era pequeno. Não é que o tenha aprendido agora, apenas. Da volatilidade das nossas certezas. Agora, tornou-se apenas flagrante. Palpável.

No primeiro dia do segundo ensaio de ensino à distância, o PÚBLICO falava em milhares de alunos sem meios para poderem assistir a aulas online. Ou falta o computador, ou falta a internet, ou faltam ambas as coisas, quando não falta mais. É desolador. Claro que esta ausência de meios, de condições mínimas para que o ensino se possa fazer com alguma competência e eficácia não caiu do céu aos trambolhões juntamente com a pandemia. Todos os anos faltam meios, humanos e/ou materiais. Todos os anos há miúdos que ficam para trás, e não necessariamente por vontade própria. Ainda assim, pensá-lo dessa forma, desvalorizando o abismo entre duas realidades tão diferentes – como a do aluno que a SIC escolheu para o seu directo matinal do primeiro dia do resto do ano lectivo, e a do Samuel, retratada numa reportagem do PÚBLICO – faz-me lembrar o tal estudo do Banco de Portugal que dava como mais penalizado pela pandemia o rendimento dos mais ricos. Eu sei que não é tão linear, que não há propriamente culpa na pobreza e na riqueza, e que é melhor tentar uma espécie de ensino à distância do que não tentar ensino nenhum. Mas, para muitas crianças e jovens, é isso mesmo: ensino nenhum.

 

Ana Gomes decidiu avançar com uma queixa na Procuradoria-Geral da República contra o Chega de André Ventura. Acho uma péssima decisão. Tantos votos depois e ainda não aprendemos a lidar com o bicho, sem ofensa para o outro, o que nos mantém em casa, a uns mais do que a outros. Assim não vamos lá, doutora Ana Gomes, e olhe que tenho imenso apreço por si. Mesmo quando defende o Rui Pinto. E continuo a achar imensa graça à senda suada, pugilística, do doutor Júdice, terça sim, terça não (não é bem, mas é quase), empenhadíssimo em colá-la ali ao líder do partido que a senhora quer ilegalizar.

 

O CDS caminha a passos largos para deixar de ser o partido do táxi. A continuar assim, nem para isso chega. Salvo seja. Ou, então, não. Há quem diga que foi isso mesmo. Já por ali se telegrita e tudo, afinadamente e afincadamente. Com a direita mais esfrangalhada ainda do que a minha atenção por estes dias, órfã de ideias, de liderança, de representação, de projectos para o país, muitos eleitores do CDS aproveitaram o luto para se atirarem para os braços desse (outro…) enviado por Deus. É o que dizem, eu não faço ideia. Imagino que a frustração seja tanta e tão variada que haja bastante mais gente disposta a fingir que acredita naquele trump-style pífio e – pior é sempre possível – fraudulento até na imitação da estrumeira.

Pode ser que Adolfo Mesquita Nunes se atreva, entretanto, a dar um passo mais arrojado. De resto, também sou daqueles que acham que a morte de António Costa é manifestamente exagerada, e dos que têm cada vez menos paciência para os dizeres do João Miguel Tavares, mesmo que, às vezes, acerte.

 

A possibilidade de prolongar o confinamento até depois da Páscoa é assustadora. Vamos “esmagar” a curva e, pelo caminho, o país inteiro. Não há uma maneira fácil de gerir este estado de calamidade, mas não haverá outra, que não passe pelo arrasar de todos os pontos de apoio? Quando tudo isto passar – porque há-de passar, mesmo que eu me obrigue a repeti-lo com uma dose maior de esperança do que certeza – vamos regressar exactamente a quê?

 

Nos EUA, o Senado decidiu-se por continuar o processo de destituição de Donald Trump. Provavelmente, não dará em nada, tal como na primeira tentativa. E o homem já nem é presidente. 

Com algumas excepções, o Partido Republicano parece ter-se rendido à visão democrática de Trump, esse colosso da estratégia política, negociador exímio, inteligente e destemido, que segue em frente no seu delírio decrépito, alimentando as suas fantasias erráticas, estridentes, em torno de uma vitória presidencial que só existe no seu imaginário alucinado e narcisista, a quem ficará para sempre colada – como uma nódoa imunda e irreparável  a data de 6 de Janeiro de 2021. Será essa a imagem de marca do 45º presidente da “nação mais poderosa do mundo”. Sem esquecer a senadora Marjorie Taylor Greene.

 

Por falar em nação mais poderosa do mundo, o programa “60 minutos" apresentou, na passada semana, uma reportagem interessante – um bocadinho sinistra e com uma teoria mais credível do que as conspirações do QAnon  – sobre uma suposta tentativa da China de recolher amostras de ADN de cidadãos americanos, através de uma avançada empresa de biotecnologia.

Na sequência do primeiro grande surto de covid-19 nos EUA, em Março do ano passado, o grupo BGI – a maior empresa de biotecnologia do mundo, sediada na China – ofereceu ajuda tecnológica especializada ao estado de Washington para fazer face, nomeadamente, à necessidade crescente de testagem para o novo coronavírus. Uma proposta tentadora, não fossem a China ser a China e as suspeitas de ligação entre o seu regime e a BGI. Não encontrei o episódio em português. Quando encontrar, hei-de cá vir trocar a ligação.

 

De um regime duvidoso e autoritário para outro regime duvidoso e autoritário, na Rússia continuam as detenções aleatórias e as repressões contra os manifestantes que exigem a libertação de Alexei Navalny.

A expressão da Liberdade tem muitas faces. Exige uma coragem que não está ao alcance de todos e faz parecer quase anedótica a resistência ao poder e o apelo à desobediência que alguns por cá apregoam. Sem ignorar essa qualidade rara que, sim, deveria ser obrigação de todos possuir: de resistir, de contrariar, de questionar. De desobedecer, se for preciso. Ainda assim, há uma linha que pode ser muito ténue entre a carneirada e a palhaçada. Com perdão para ambos. E, na Birmânia, numa outra luta a ferro e fogo pela democracia, há uma miúda de 19 anos entre a vida e a morte, depois de ter sido atingida a tiro pela polícia


Que eu tenha reparado, não me tinha dado conta deste absurdo. Não me refiro à petição, evidentemente, antes a esta odisseia estapafúrdia dos tempos modernos, empenhada em branquear a História a qualquer custo. O politicamente correcto, ou lá o que é, ameaça tornar-se mais perigoso do que todos os pecados juntos que tenhamos cometido no passado. E cometemos muitos.   


Não é tudo, mas, de momento, não tenho fôlego para mais. Talvez apenas para dizer que me tenho deixado encantar pela chuva lá fora, nas últimas noites. A vê-la e a ouvi-la. As gotas grossas, que caem perfeitas antes de se despedaçarem contra os vidros da janela, contra as folhas largas e carnudas da planta de exterior que mantenho na varanda e de que nunca recordo o nome. Um estalido curto e seco, depois de outro, e de outro. Uma melodia bela e harmoniosa ensaiada sob a batuta desse Universo indiferente às nossas preocupações. Ainda assim, mesmo que sem consciência dos nossos abismos ou do nosso assombro, habitamos sob as suas leis este minúsculo "ponto pálido" improvável, aparentemente perdido na imensidão do Espaço. De alguma forma, a certeza de que há uma outra existência que segue o seu curso alheia à desordem em que se afundou a nossa, tranquiliza-me.