quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

De todas as coisas que me têm feito falta – e, de entre essas, aquelas de que posso falar aqui – tenho saudades de passear. De viajar, de conduzir. Gosto muito de conduzir. Conduzir, conduzir, não aqueles aguados minutos que demoro a chegar ao escritório, aonde me tenho obrigado a ir todos os dias, apesar de tudo, apesar de todos os tudos, ao contrário do primeiro confinamento. Teletrabalho fora de casa quase sem pôr um pé na rua, de um estacionamento a outro estacionamento, para conservar alguma sanidade mental.

Mas, sinto falta de conduzir grandes viagens. Se pudesse, viajaria apenas de carro. A volta ao mundo em mais de oitenta dias, os dias que fossem necessários para o (e)feito. E podia ser sozinha. Gosto muito de conduzir sozinha, apesar de não gostar tanto de viajar sozinha.

Devo ao meu pai, o prazer de conduzir. Ensinou-me a conduzir “como um homem”. “Conduzes como um homem”, já não sei quantas vezes mo disseram. Séculos de evolução, parece, e continuamos enfiados numa sociedade machista. Também é verdade que já ouvi (às vezes, sem que se pronunciasse uma palavra) coisas piores, se fosse falar de machismo, e não vou.

 

Às voltas com boas memórias de viagens antigas, refiz os caminhos pelas estradas da Córsega. Sonhando acordada, que são os únicos sonhos que pareço capaz de recordar. Nunca sei o que acontece aos outros, os que dizem que sonhamos sempre enquanto dormimos e que eu nunca recordo. Como recordo as estradas da Córsega, entre as montanhas escarpas, de granito cinza ou rosa aquecido pelo sol. O precipício nu e selvagem que corre ao meu lado, as rochas que tombam sobre o caminho, sem aviso, as janelas que se abrem como quadros sobre o mar azul-turquesa, uma beleza absurda que brota insolentemente de todos os poros da ilha encantada. Dizem que são estradas para conduzir de mota, mas nunca aprendi a conduzir uma mota como conduzo um carro, e há muito tempo que não deixo que me conduzam de mota (de carro, tem dias e tem gente; muito poucos dias e ainda menos gente).

Também recordo com saudade as estradas recortadas no ventre da bela Escócia, dedilhando montanhas verdes. Verdes de todos os tons de verde que ousarmos imaginar. O verde das Terras Altas é um puro-sangue indomado. E indomável. Debruado a talha dourada, levezinha, que o Sol, generoso, vai vertendo sobre o caminho, aqui e ali, em chuviscos de luz que, no asfalto, abrem círculos húmidos disformes que logo desaparecem quando me aproximo, como é dever das ilusões.

Nas estradas mais estreitas só passa um carro de cada vez. Vão surgindo no caminho umas meias-luas, ora à esquerda, ora à direita, em linha de vista para que um dos condutores – o mais próximo desse refúgio – se desvie por um momento, dando passagem ao condutor que surge ao longe, na sua frente. Conto de memória, pelos dedos de uma mão, as vezes em que fui eu a desviar-me; quase não chegava a ter tempo. Os escoceses eram, à época (não sei se ainda), um exemplo de civilidade irritante. Dizem que são assim os japoneses, mas nunca estive no Japão.

Não sei se por isso, pelo civismo que se respira nas estradas da Escócia, não me pareceu tão estranho conduzir do lado contrário. Nem sequer em cidade. Com excepção das rotundas, talvez.

 

Também sei que é bastante obsceno preocupar-me com viagens e passeios com o mundo em chamas; tenho plena consciência dos meus defeitos, até dos defeitos que finjo não ter. O “nosso” mundo em chamas e eu em veraneios. Há um outro mundo a que continuamos alheios e que arde há muito mais que 11 meses; às vezes, arde à nossa porta sem darmos por isso. E Portugal a desfazer-se em cacos numa ruína agastada e apodrecida por anos e anos de mediocridade, compadrio, incompetência e corrupção. Aquela corrupção que dizem que não temos. Afinal, não somos o Brasil, não é?, como não chegámos a ser a Grécia. Só é pena que nunca cheguemos a ser a Suíça, ou a Alemanha, ou o Canadá. Um dia destes cruzei-me com uma portuguesa que viveu no Canadá e está desejosa de lá voltar (ainda há quem se atreva a falar connosco na rua), apesar daquele clima desgraçado. Não se pode ter tudo. E, por acaso, até tenho pouca simpatia por portugueses que viveram fora e voltam para dizer mal disto, mesmo que isto seja, por vezes, insuportavelmente miserável. Pecado de que eu também padeço assim-assim, aquela maledicência, com a agravante de que vivi num país tido como pior, sob vários aspectos. 

 

Mas, nem tenho prestado muita atenção às notícias. Ver, ou ler, notícias tem sido bastante penoso, nas últimas semanas. Não são só os números, os mortos, os escândalos. É tudo demasiado. E o desvario da comunicação social, a informação monotemática, monocromática, monocórdica. Agora, são as vacinas. Ou eram, hoje ainda vi menos notícias do que nos dias passados. À incompetência junta-se o inominável expediente português – podemos chamar-lhe “chico-espertice”, mas é já algo de mais nojento; fétido. O mais recente esquema de vacinação – a par do suposto plano de vacinação – é o equivalente ranhoso das falsificações de moradas fiscais para recuperação de casas em Pedrogão à custa de vidas alheias. Só não sei por que nos espantamos tanto, eu incluída: não é o nosso velho normal? Não devia haver um momento para dizer basta?

Também queria dizer qualquer coisa sobre a eutanásia e a aprovação dos respectivos projectos de lei no Parlamento. Uma ironia quase macabra. Não sei se gosto do momento, apesar de, pessoalmente, ser a favor da morte medicamente assistida. Compreendo que haja quem seja contra e respeito-os – como se essa questão se colocasse sequer –, mas não entendo alguns dos seus argumentos. Mas isso sou eu, que também não entendo ser possível matar o que já está morto. Há doenças que há muito mataram o corpo que habitam, mesmo que esse corpo ainda “viva”. Não se diga que cuidar, com toda a dedicação, amor e carinho, de um doente terminal é suficiente para que ele não sofra. Não é. Todos os que já assistimos, imponentes e horrorizados, ao definhar de um dos nossos, sabemos como o sofrimento é avassalador. Para o doente, em primeiro lugar, obviamente. E para os seus, evidentemente. Sofremos com ele, sofremos por ele. Porque o vemos em permanente agonia, numa degradação acelerada, alucinante, estúpida e sem marcha-atrás. E sei que não vale comparar, quem passou pelo inferno e quem não passou pelo inferno.

 

De resto, continuo a vaguear pelas páginas d’ “O Infinito num Junco”. Não é um arrebatamento, mas lê-se com uma dose suficiente de prazer. Uma história de amor assente sobre muitas outras histórias, algumas também de amor; um amor suave e sem escândalo.

“Quando um relato me invade, quando a sua chuva de palavras penetra em mim, quando compreendo de forma quase dolorosa o que conta, quando tenho a segurança – íntima, solitária – de que o seu autor mudou a minha vida, volto a acreditar que eu, especialmente eu, sou a leitora de quem esse livro andava à procura”. Às vezes, sinto-me assim. Como se alguém escrevesse para mim. Intencionalmente e apenas para mim. Sei que me deixo confundir, mas, por um instante, que prolongo sem remorso retomando as linhas desde o início, uma vez e outra vez, é como se escrevesses para mim.

 

E li que morreu Tom Moore, o veterano da Segunda Guerra Mundial que, aos 100 anos, resolveu dar 100 voltas ao jardim de sua casa, num tributo ao Serviço Nacional de Saúde inglês, em plena pandemia. Queria recolher 1000 libras em donativos, angariou mais de 30 milhões. O vírus que nos tem refém a todos, impiedoso, levou-o. Morreu um desses homens bons.