Parece que hoje é dia de Carnaval, e só me lembrei disso porque alguém se espantou porque vou trabalhar. Não me lembrava da data e, além disso, não costumo fazer a tradicional pausa de Carnaval. Que, segundo percebi, não existe, este ano.
Aparentemente, há gente para quem a vida segue relativamente normal, afinal, e ainda bem.
Mas lembro-me de ter
lido qualquer coisa sobre o não Carnaval de Veneza, este ano outra vez. A agonia
da Praça de São Marcos quase deserta, engolida pelo silêncio daninho, não o meu, mas aquele silêncio que açoita
e esmaga. E, da pouca gente, alguma vestida de médico da peste, a máscara a
preceito, de bico longo de pássaro, sinistro, que, à época, se enchia de
incenso e perfume de rosas e outras misturas que se diziam e queriam protectoras.
Não sou nada, nada,
de carnavais, mas hei-de ir ao de Veneza. Um dia, quando a tempestade passar. Deixar-me
seduzir pela suavidade das plumas, tingir-me de cores exuberantes, esconder e
destapar o rosto por detrás dos olhos imensos, espelhos de almas travessas,
absorver os cheiros, os sons, sem decoro, avidamente, atenta a cada vibrar da
pele que se esconde entre folhos, e sedas, e chapéus de três pontas ou
turbantes luxuriosos, inebriada da liberdade de ser outro alguém, ou eu própria
sem pudores sociais, sem ordem, à mercê dos pecados do povo ou da avidez
voluptuosa da elite aristocrática, segundo me contam vozes mais atentas e atrevidas.
Hei-de perder-me, seja de que maneira for. Despir-me de convenções por um dia, para lá destas máscaras de agora, cirúrgicas, aberrantes, com que
tentamos, também nós, sobreviver à nossa própria peste.