segunda-feira, 19 de julho de 2021

Para Remissão de Quantos Pecados?




O filme é antigo e, frequentemente, assalta a minha memória, embora só agora me tenha lembrado de que fazem parte do elenco Joaquin Phoenix (que só não venero por embirração com o verbo) e Sigourney Weaver e que o realizador é o mesmo de O Sexto Sentido. Há quem goste, há quem não goste; não sei se ainda se pode dizer assim, sem juízo e sem rancor.

A história gira à volta da vida numa floresta isolada do mundo exterior, à margem de qualquer contacto com a civilização moderna, não exactamente a nossa, mas não muito longe da nossa. Os habitantes são mantidos numa ilha selada à custa de uma espécie de fábula do lobo mau: era uma vez... umas criaturas perigosas, horrendas, que atentarão contra a vida daquele ou daquela que ousar transpor os limites da vila. Usam mantos vermelhos, cravejados de espinhos. O vermelho é a cor proibida, a cor do pecado, a marca indecorosa dos infames.

A farsa montada por alguns dos habitantes mais velhos do grupo resgatou a inocência e os bons costumes e suspendeu no tempo e no medo a vida de alguns eleitos: famílias destroçadas pela dor, empenhadas numa busca idílica pelo Bem, aniquilar a Besta, abolir o pecado do mundo que criaram para si e erguer uma sociedade perfeita, etérea, imaculada. É esta a porta de entrada para a (ir)realidade imaginária e imaginada do filme de M. Night Shyamalan, A Vila, que vi pela primeira vez já lá vão muitos anos. Recorrentemente, a propósito dos vários intentos recentes e menos recentes para embelezar as chagas que fazem parte da História, lembro-me dele. Ou são as estátuas, ou são as torres. Ou os contos infantis, ou os filmes. Ou os autores, ou os livros. Derrubamos, rebaptizamos, apagamos, corrigimos. Para eliminar, dizem, a violência, o sexismo, o racismo, e outro tanto de interpretações instantâneas e avulsas. Já nem há lugar à ironia. Tudo passou a ser literal. Vamos, assim, desinfectando a fundo muito mais do que as mãos e as superfícies comuns, frenéticos, alisando, escrupulosamente e sem desvios, todos os cantos obscuros ou incómodos da Humanidade lida, contada, cantada, vivida, sofrida, um lifting obtuso, prepotente e ignorante, tapando as marcas do tempo à espera de renascermos livres de todos os vícios, de todas as rugas, estéreis e despojados de identidade. Não Matem a Cotovia, o clássico de Harper Lee, volta a sair do currículo: "promove" a ideia do “salvador branco” e é urgente procurar “textos menos problemáticos”. Mas o que isso, afinal, de "textos menos problemáticos"? 

Não se trata de desvalorizar o sofrimento atroz de uns e o abuso criminoso de outros. Há-de haver sempre dos dois, é intrínseco à natureza humana. Seja por cobiça, por ciúme, por vingança, por poder ou, simplesmente, por maldade. Talvez até por amor. Por ódio, indiscutivelmente. O que incomoda sempre e ofende muitas vezes tanto ou mais do que os capítulos mais negros (sim, mais negros) da História, é esta tentativa absurda de infantilizar, de censurar, de apagar, quando o que se impõe fazer é educar, discutir, sarar.  

E talvez tenha lido demasiadas vezes a profecia de Ray Bradbury, ou o confinamento me tenha afectado mais do que imagino, porque tenho andando louca a refazer estantes, a compilar clássicos, a dividir com a minha irmã os livros que temos em casa dos nossos pais e que partilhávamos em miúdas, a comprar histerica e compulsivamente os que me faltam, a ler e a reler, a marcar, a anotar, e ameaço o meu filho de assombrações sinistras – que juro que lhe apareço pálida, mais pálida, à noite, aos pés da cama e outras coisas igualmente impróprias para as idades de ambos – se algum dia depois de mim lhe passar pela cabeça desfazer-se desta espécie de biblioteca que pretendo deixar-lhe à força, incluindo todos os livros de contos infantis proscritos não tarda nada, A Branca de Neve, O Polegarzito, A Bela Adormecida, o Peter Pan e outros que tais. Ele ri-se e diz que eu sou doida e eu fico mais tranquila. Ainda assim, há-de ser – falhadas todas as outras, ainda não sei a derradeira tentativa, a minha derradeira tentativa, de resgatar das malhas tenebrosas desta perfeição postiça a humanidade que me é mais próxima. 

Nem n´A Vila de Shyamalan se livraram do pecado, e é sabido como a vida imita demasiadas vezes a ficção.

O resto do país e do mundo não tem encontrado grande espaço neste espaço. Não é que não pense no que merece ser pensado, mas tenho pensado tanto e tão mal que receio a verbalização da minha ira na forma de texto. Preciso de fingir que acredito que vai ficar tudo bem.