A
modernidade desfez outro prazer antigo: o de atrasar uma hora o relógio
mecânico e prolongar o prazer de fazer recuar o tempo. Mesmo que apenas uma vez
por ano, e para recuperá-lo à entrada da Primavera. Restam-me os relógios de pulso – ninguém me
apanha com uma bugiganga daquelas espertas que mede o humor, as horas de
sono que permitem sonhar (desconfio que só tenho das outras), os níveis de
stress e quantos passos demos ao fim de um dia. Prefiro o tique-taque
compassado, circular, que marca o presente sem alarme. Sabe-me a renovação. Como
o sangue que se regenera a cada ciclo. E a ilusão, também: de que posso atrasar-me,
resgatar o tempo que me falta para tudo o que não fiz ainda, ler os livros que
acumulo, os autores que descubro por feliz acaso. “Sem
segredo algum…
Rodeio-te de nomes, água,
fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.
A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.
O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.”
António
Ramos Rosa
É para ti. Pelas saudades que tenho de ti.